Foto de Renata Penna - Projeto Bonita é Mãe (http://bonitaeamae.tumblr.com/) |
Na
semana passada postei um texto que buscava demonstrar a
importância do feminismo para o movimento da humanização do parto. Contudo,
alguns debates me fizeram mudar de ideia em relação a esta frase:
“Até por isso, uma cirurgia cesárea
pode ocorrer de forma muito respeitosa, mas nunca será humanizada, visto que o
sujeito ativo da cirurgia é o médico, sendo dele o protagonismo pelo ato.”
O primeiro debate que me chamou atenção para o equívoco desta
frase, surgiu de uma postagem da Dra. Melania Amorim em que defendia que
poderia haver atendimento humanizado em uma cesárea.
A partir dessa discussão, pedi ajuda às amigas ativistas para entender como isso era
possível e o que obtive foi uma troca de ideias bastante rica que acabou por
me fazer reconsiderar a frase acima. Disseram até que o assunto era tão vasto
que pesquisar sobre a humanização poderia levar anos! Alguns dias depois, e o
post está feito. Então, a pesquisa foi superficial, mas nem por isso, o texto
ficou curto. O assunto é bem complexo e, por isso, peço aqui paciência e tempo
pra chegar até o final :-P .
Primeiramente, é importante frisar que o conceito de
humanização da saúde e humanização do parto são conceitos distintos, embora
este tenha se originado daquele. Ainda, o movimento da humanização da saúde já
tem uma longa história e é bastante conhecido dos profissionais da saúde.
Neste debate, foi-me sugerido a leitura de um estudo sobre a
humanização da saúde, que pode ser lido da íntegra aqui. E alguns trechos considero importantes serem
destacados:
"DESLANDES (2004), em um estudo que analisa o discurso do
Ministério da Saúde sobre a proposta de humanização na assistência à saúde, em
nosso meio, destaca que o termo humanização, como tem sido empregado, carece de
uma definição mais clara e tem significado um amplo conjunto de iniciativas que
abrange:
- A assistência que valoriza a qualidade do cuidado do ponto de
vista técnico;
- O reconhecimento dos direitos, da subjetividade e da cultura do
paciente;
- O valor do profissional da saúde.
Portanto, as ideias centrais de humanização do atendimento na
saúde são as de: oposição à violência, compreendida como a negação do outro, em
sua humanidade, necessidade de oferta de atendimento de qualidade, articulação
dos avanços tecnológicos com acolhimento, melhorias nas condições de trabalho
do profissional e ampliação do processo de comunicação."
(...)
"MINAYO (2004) analisa o mesmo texto de Deslandes recordando
a história das correntes filosóficas humanistas e esclarecendo que o humanismo
laico e o cristão possuem três aspectos fundamentais que devem ser levados em
consideração quando se discute humanização em saúde:
1) A centralidade do sujeito em intersubjetividade. Neste caso, o
profissional de saúde deve reconhecer o outro em sua humanidade, ou seja,
indivíduo com capacidade de pensar, agir, interagir, ter lógica, manifestar-se
e expressar intencionalidade.
2) O ser humano como síntese de seus atos. Observa que o processo
de humanização transcende os esquemas, funcionalista e mecanicista, que são
traçados para “racionalizar sua implantação”. O existencialismo prega que um
projeto só “é” ou “está em ação” quando envolve vários sujeitos, nos quais se
acredita e se leva em conta “suas verdades em ação.”
3) O modelo médico continua sendo de formação tecnicista e
instrumental. Nele, a formação dos profissionais da saúde supervaloriza o
positivismo e as teorias mecanicistas que tratam o ser doente como organismo
formado por um dispositivo bioquímico e funcional. No fundo, percebe-se, por
parte do profissional, um menosprezo pela liberdade e autodeterminação do
paciente."
Pela
leitura destes trechos, pode-se inferir que por humanização da saúde se entende
um modelo de atendimento mais focado na subjetividade do paciente e menos em
teorias mecanicistas. O termo humanizar se aplica a um conjunto de práticas em
saúde (e reflexões acerca dessas práticas) que se propõe a fazer frente a uma
assistência mecanizada e automatizada. Quem
se interessar sobre humanização na área da saúde, recomendo muito a leitura
completa do arquivo linkado acima.
Esses
princípios também estão presentes na definição de humanização do parto,
contudo, este conceito é mais específico.
A Dra.
Melania Amorim conceitua a humanização do parto da seguinte maneira:
"Humanização do parto consiste em um tripé: a retomada do
protagonismo feminino no PARTO (e por isso não se fala na cesárea, que nem
é parto nem tem protagonismo), a visão do parto como um evento de múltiplas
dimensões biopsicossociais e espirituais (não como ato médico) que deve ser
atendido pela equipe transdisciplinar, e uma sólida vinculação com a medicina
baseada em evidências."
Neste
mesmo sentido, é a definição encontrada na página 112 do caderno do HumanizaSUS,
disponível aqui:
Esse modelo pretende oferecer interlocução criativa entre
paradigmas conflitantes. Se o “naturalismo” nos aprisiona nos ditames
inexoráveis de uma natureza imprevisível, a “tecnocracia” também nos encarcera
sob o domínio de uma tecnologia despersonalizante, coisificante e
objetualizante, que se opõe às aspirações humanas de liberdade e autonomia.
Portanto, a humanização do nascimento apresenta proposta baseada nesse tripé
conceitual:
1. Protagonismo restituído à mulher, como premissa fundamental,
sem o qual se estaria apenas “sofisticando a tutela” milenarmente imposta pelo
patriarcado.
2. Visão integrativa e interdisciplinar do parto, retirando deste
o caráter de “processo biológico” e alçando-o ao patamar de “evento humano”,
onde aspectos emocionais, fisiológicos, sociais, culturais e espirituais são
igualmente valorizados, e suas específicas necessidades atendidas.
3. Vinculação visceral com a Medicina Baseada em Evidências,
deixando claro que o movimento de “Humanização do Nascimento” é fundamentado na
razão e na pesquisa científica, e não em crenças religiosas, ideias místicas ou
pressupostos fantasiosos.
Antes
de tudo, uma grande diferenciação entre esses conceitos é que a humanização do
parto trabalha com um evento fisiológico, ou seja, a princípio não é um ato
médico. Sendo assim, ainda mais importante desvincular o atendimento de
procedimentos tecnicistas e mecânicos.
Essa
preocupação em relação ao respeito do protagonismo da mulher está diretamente
relacionada com a questão de gênero. A experiência do parto, ou mesmo da
cesariana, só pode ser vivenciada por mulheres*. E, em razão da sociedade
patriarcal a qual estamos inseridos, muito do machismo é refletido na
assistência ao parto. Ou seja, a mulher é subjugada e sua vontade
desconsiderada. Não é à toa que o sistema obstétrico, de um modo em geral,
costuma ser muito violento. Portanto, em vista dessa realidade, outros
princípios também devem ser considerados para que se possa nomear a assistência
ao parto de humanizada, como o respeito à autonomia e ao protagonismo da mulher.
Isto
posto, é de fundamental importância a reflexão sobre o que é autonomia e
protagonismo feminino.
Autonomia
no contexto da assistência humanizada ao parto pode ser compreendida como a
capacidade de decidir livremente, de realizar escolhas sobre o seu próprio
corpo e a sua sexualidade nas variadas dimensões e resultados em que o parto
pode se dar. Nesse sentido, protagonismo pode ser compreendido como o exercício
da autonomia.
Portanto,
sendo o protagonismo um exercício da autonomia que é a capacidade de escolher
livremente, todas as escolhas devem ser respeitadas. Inclusive a escolha por
não parir. É importante frisar aqui que autonomia é uma palavra radical, ou
seja, ela não é mediada ou negociada. Muitos profissionais fazem crer que a
escolha pela cesárea partiu da mulher quando, na verdade, ela baseou a sua
decisão em informações falsas prestadas por
eles. Infelizmente, isso é bem comum. Portanto, quando falo em respeito a
escolhas, estou falando de escolhas legítimas e não viciadas em informações
falsas, ainda que seja preciso debater essa manipulação impingida
por profissionais de saúde.
Portanto,
o exercício da autonomia pode ser feito, inclusive, de forma que precarize
nossas vidas. Fumar, por exemplo, é uma escolha. E as pessoas a fazem mesmo
sabendo de todos os males que esse hábito pode causar. Então, autonomia e
protagonismos podem antagonizar com bandeiras da humanização do parto**.
Uma
cesárea eletiva pode ser realizada de forma autônoma e protagonizada? Não
podemos negar que há mulheres com acesso a informação e a profissionais de
saúde qualificados, independentes, a par dos debates de humanização, que
circulam em espaços de militância e que, ainda assim escolhem por uma cesárea
mesmo no início da gravidez, sem qualquer indicação para tal. Essa escolha pode
ocorrer por motivos subjetivos – preparar-se para o parto exige uma disponibilidade***,
ainda que mínima, e nem toda mulher está disposta a isso. Parto pode ser
intenso e mexe com muita coisa – no plano sentimental, espiritual, psicológico,
inconsciente ou mesmo pode evocar um passado. Além disso, considerando a
realidade do sistema obstétrico em que a violência obstétrica de tão
normalizada é normatizada, a escolha pela cesárea eletiva pode ser considerada
até uma fuga legítima. Ou seja, a escolha pela cesárea nem sempre representa
uma abdicação pela autonomia e protagonismo.
E é
nesse ponto que o conceito de sujeito ativo ou passivo se perde. Porque, nestes
casos, se há verdadeira escolha, existe também autonomia e protagonismo e,
deste modo, não posso falar em passividade na relação. Posso, até mesmo,
estender esse debate para a questão do empoderamento para parir. Há mulheres
que escolhem se empoderar em outras áreas da vida (seja no trabalho, seja em
alguma militância, etc) e não estão dispostas a se encher de poder para parir.
É uma escolha, e é legítima.
Imperioso
lembrar que estamos falando de nascimento, de vida e, neste âmbito,
independentemente de qualquer tomada de decisão, há riscos e se há riscos não
há garantia de resultados. Ora, precisamos falar que a assistência humanizada
ao parto inclui casos de óbito fetal. Se há gestação, há risco de aborto
espontâneo em qualquer fase, então, também é preciso inserir no debate a
assistência humanizada à mulher em situação de abortamento.
Ainda,
é importante ressaltar que mesmo em gestações saudáveis e tranquilas a cesárea
pode ser necessária. A própria OMS recomenda que 15% de cesáreas é um número
que representa as gestações que têm que ser interrompidas via cirurgia.
Portanto, uma assistência humanizada não pode estar atrelada ao resultado,
visto que assistência é processo e não o fim em si. Este processo pode se
iniciar nas consultas de pré-natal ou mesmo no início do trabalho de parto, ou
seja, o atendimento humanizado antecede o resultado. Sendo assim, negar a humanização
do parto, ainda que não haja parto, significa negar o processo em razão do
resultado.
Portanto,
em se falando de respeito à autonomia e protagonismo feminino, não pode existir
um pacote de procedimentos que caracterizem a humanização do parto. Humanizar o
parto é respeitar subjetividades, de forma a se comprometer com todo o processo
de nascimento. E, dentro desta reflexão, entendendo que o que deve ser
priorizado é o processo e não o fim, não seria mais correto o uso do termo
“humanização do nascimento” no lugar de “humanização do parto”?
Este
debate pode parecer à primeira vista superficial na medida em que se questiona
conceitos, contudo, há muitas implicações práticas:
1. Sim,
é possível o atendimento humanizado mesmo em se tratando de cirurgia cesárea.
Aceitar isso é entender que o conceito da humanização da saúde é muito mais
abrangente daquele da humanização do parto. É respeitar todo o histórico de
luta dos profissionais da saúde que trabalham pela humanização. No entanto,
falar em atendimento humanizado na cesárea não é o
mesmo que cesárea humanizada. Sendo a cesárea um ato médico e
também por ser uma cirurgia é importante que as evidências científicas e a boa
técnica sejam observadas. Portanto, a cesárea em si não pode ser
humanizada, mas a assistência ao nascimento que culmine numa cesárea,
principalmente antes e após a cirurgia, podem ser humanizados.
2. Receber
um atendimento que respeite sua subjetividade durante a gestação e trabalho de
parto pode ser fundamental para o exercício da maternagem, para o sucesso no
aleitamento materno, principalmente, na fase puerperal.
3. Entender
o trabalho de parto e sua assistência como um processo que pode não acabar com
o resultado desejado, também nos livra da sensação de fracasso. E, se isso
porventura aconteceu com você, indico muito a leitura desse texto, que considero uma das coisas
mais lindas que já li no espaço virtual.
4. Ainda
que se escolha por uma cesárea, conceitos da humanização do parto podem ser
estendidos para o atendimento pós nascimento, dispensando intervenção
desnecessárias no bebê e estimulando o contato e a formação de vínculo entre
mãe e bebê.
5. Refletir sobre essas questões e sobre a
escolha da assistência a ser prestada auxilia na garantia do exercício da nossa
autonomia. Porque não adianta escapar da tutela do cesarista para ser tutelada
por profissionais que se intitulem “humanizados”
mas que em realidade não respeitam a autonomia e o protagonismo feminino.
*Esse
texto é reflexo de um lugar de fala de mulheres cisgêneras, portanto limitado
pela experiência do privilégio. Apesar de estarmos falando aqui exclusivamente
de mulheres cis, entendemos que é importante avançar numa reflexão
transfeministas - em outros países em especial no Canadá tem crescido a
participação de pessoas trans no debate sobre assistência ao parto e
aleitamento.
**
Respeitar a escolha pela cesárea não significa desconhecer ou
desconsiderar o fato que a cirurgia é mais arriscada tanto para mãe quanto para
o bebê. E, além do risco, priva os dois de gozarem dos benefícios de um parto natural.
***Especialmente
em um contexto em que a violência obstétrica é presente e há possibilidade,
ainda que seja privilégios, de optar por parto domiciliar, hospitalar ou em
casa de parto.
Este
texto foi escrito em parceria com a grande amiga Xênia Mello. E ainda contou
com a participação da Ana Rossato, Bruna Betoli, Mariana Elis, Helenice Assis
Vespasiano, Laura Silva, Stella Siqueira Campos e Lidi Berriel (sempre tão
necessária nas minhas reflexões sobre o movimento da humanização e sobre
violência obstétrica).
Agradeço
à Dra. Melania Amorim por fomentar o debate. Para quem não a conhece, ela é uma
obstetra ativista pela humanização do parto. E como se isso não bastasse, ainda
escreve esse blog que é recheado de
informações sobre gestação e parto, e quando a gente não entende, ela desenha aqui.
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