segunda-feira, 28 de setembro de 2015

As crianças e a comunidade

Uma das coisas mais estranhas que me aconteceu desde que me tornei mãe foi a intromissão de geral na minha vida. Foi com o despontar da barriga que começaram os pitacos, as intromissões, os conselhos. Mas nada se compara com a chegada do bebê e a súbita sensação de que minha vida (e a dele) de uma hora para outra se tornou pública.

Andar com um bebê na rua significa atrair inúmeros olhares, além da possibilidade de ser parada para uma conversa despretensiosa com qualquer pessoa. É como se o simples fato de carregar um bebê desse carta branca para que as pessoas lhe dissessem como conduzir sua vida, apontar falhas sem qualquer constrangimento ou iniciar uma conversa sobre a experiência de ter filhos. Para alguém reservada e curitibana como eu foi algo assustador.

No começo fiquei perplexa e muitas vezes chateada, ou até mesmo brava com essa situação. Na maioria das vezes ou não respondia ou esboçava um sorriso amarelo, mesmo quando a vontade era de responder: "Te perguntei alguma coisa?". Contudo, faz uns meses que comecei a perceber que me acostumei a essa situação e poder conversar com pessoas que não conheço me traz uma sensação de pertencimento. Uma sensação tão boa que me sinto só, ensimesmada mesmo quando não ando pelas ruas com  meu filho.

Eu o levo a escola de ônibus todos os dias. O entrosamento já começa no elevador se encontramos algum vizinho. O que antes era somente um bom dia seco, agora a conversa se aperta nos poucos segundos que temos ali dentro. Cumprimentamos o zelador na portaria e saímos para rua. Não raro encontramos o gari logo à porta e o Daniel nos explica que é importante não jogar lixo na rua para não entupir o bueiro. O gari concorda e sempre troca umas risadas com ele. Seguimos e vemos uma linda imagem de uma mulher grafitada na parede. Daniel se encanta com a borboleta que ela carrega em seus ombros. Mas há poucas semanas, alguém pichou a imagem. Ele me pergunta, então, todos os dias: "Por que riscaram a cara da moça, mamãe?". Andamos mais um pouco e ele logo avista a barraca de frutas. Rapidamente me pede a moeda e corre para escolher a sua banana. O dono da barraca tem um filho da mesma idade que ele e se diverte com a felicidade que o Daniel demonstra ao fazer a sua compra sozinho: da escolha do produto ao pagamento. Seguimos para a fila do ônibus. Ali os passageiros já o conhecem pelo nome, tal qual o motorista. Eles sempre se surpreendem com a celeridade do crescimento do Daniel e como ele está mais falante a cada dia. A sensação é sempre a de zelo, tanto por mim quanto por ele. Chegamos ao nosso destino em frente a um prédio da prefeitura. Daniel fica encantado quando encontra o guarda hasteando as bandeiras. Seguimos em direção à casa do Nino, um cachorro magrinho que sempre está a procura do sol. Fazemos os cumprimentos rotineiros e ele permanece inerte. Mas quando nos despedimos, ele levanta num supetão e começa a latir enlouquecidamente. Passamos à casa do Bolota, Pepa e Nifet. Três cachorros que de longe nos escutam e esperam ansiosamente no portão. Às vezes encontramos a simpática moradora da casa e nos estendemos mais alguns minutos. No caminho ainda encontramos mais alguns moradores que já estão acostumados com nossa rotina até chegarmos no parquinho. Um parquinho acolhedor numa rua tranquila mas sempre carente de crianças. Pouquíssimas foram as vezes que vi ele receber a visita de outra criança que não fosse o Daniel. Me deixo convencer que outras crianças passam por ali mais ao fim do dia. É geralmente neste trecho que encontramos João, o gari, que sempre chama o Daniel de galego. Ainda temos tempo de afagar os três gatinhos vizinhos da escola e o cachorro Guido que vive com eles. Quando é época de amora pegamos algumas do pé e chegamos no portão da escola onde me despeço do meu companheiro de aventura.

Um percurso que poderia fazer sozinha e a pé facilmente em 20 minutos, costuma demorar quase uma hora. Cultivar essa rotina e cuidar para que tudo seja feito sem pressa nos abre a possibilidade de sempre conhecer gente nova, observar a minhoca que desliza entre a grama e perceber a imagem enorme do Paulo Leminski que nos observa. Caminhar com uma criança se deixando ser levada por ela é redescobrir a cidade e se sentir parte de uma comunidade. Uma comunidade formada por pessoas dos mais diferentes tipos que não se resumem apenas entre os nossos, sejam amigos, familiares ou colegas.

E o mais incrível é perceber como a infância é comovente. Uma criança nunca passa desapercebida por meio das pessoas. Seja através da completa indiferença (que não se enganem: nunca é espontânea) ou até daqueles que se sentem no direito de tocá-las antes mesmo de trocar algumas palavras.

E todo aquele meu desconforto com o que eu achava ser intromissão, hoje se transformou em satisfação. Deu lugar a uma sensação de fazer parte desse lugar que vivemos, de estar verdadeiramente entre as pessoas e o melhor: de que as pessoas se importam com a infância, ainda que a seu jeito, a infância ainda comove.


Há um vídeo lindo aqui que mostra a rotina do Tim Tim, muito parecida com essa do Daniel.

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