terça-feira, 4 de maio de 2021

FEMINISMO E MATERNIDADE: UMA RELAÇÃO CONFLITUOSA?

 *Texto originalmente publicado em 2015 no site "Cientista que virou mãe"

O feminismo entrou de vez na minha vida junto com o nascimento do meu filho. Foi a maternidade que me mostrou o quanto eu precisava ser feminista. A partir daquele momento comecei a me dar conta que as cobranças em relação à mãe eram imensamente maiores que àquelas dirigidas aos pais. Percebi que as violências obstétricas que sofri e que acabaram culminando em uma cesárea indesejada eram frutos de um sistema misógino e machista que viola os direitos reprodutivos femininos. Passei a me incomodar com a reação diante do meu corpo despido que amamenta em público, olhares que violam, comentários que julgam, conselhos que passam por cima da minha autonomia sobre meu corpo.

Ora, diante do quadro que a maternidade se apresentou a mim, como não me declarar feminista? Como não lutar pela autonomia do meu corpo? Autonomia esta que deveria me garantir se quero engravidar, se quero manter a gestação, se quero parir, onde e como quero parir, se quero amamentar, onde quero e por qual período.

E foi há pouco tempo que passei a perceber que esse encontro – que para mim, parecia tão óbvio – é, na verdade, bastante conflituoso. De um lado argumentos defendem que a maternidade aprisiona as mulheres e de outro, que o feminismo tangencia o cuidado com as crianças. E tenho me debruçado desde então sobre estas questões e achado que, embora haja muita confusão aí, nenhuma das premissas está totalmente errada.

É inegável que a maternidade, de certa forma, nos limita. Criar filhos dispensa tempo, dinheiro, disposição, cuidados. E, ainda, quando existe um comprometimento real pelo bem-estar afetivo e emocional da criança, a criação dos filhos não é nada fácil. Alia-se isso ao fato de que a sociedade patriarcal impinge a responsabilidade exclusiva das mulheres tanto a maternagem como as atividades domésticas e, assim, temos uma legião de pessoas que, de fato, está presa a estas condições que lhe são previamente impostas.

Quantas estudantes não param de estudar após a gravidez? Quantas trabalhadoras abandonam a carreira em prol dos cuidados com os filhos? Quantas militantes suspendem lutas por não haver acolhimento à criança em suas bases? Quantas mulheres abandonam sonhos pela maternidade?¹ E quantos pais fazem isso? É evidente que a carga é muito mais pesada para elas do que para eles:

Desde Durkheim, sabe-se que o casamento prejudica as mulheres e beneficia os homens. Um século depois, a afirmação deve ser entendida em suas nuances, mas a injustiça doméstica permanece: a vida conjugal sempre teve custo social e cultural para as mulheres, tanto no que diz respeito à divisão das tarefas domésticas e à educação dos filhos, quanto à evolução da carreira profissional e à remuneração. Hoje, não foi propriamente o casamento que perdeu o caráter de necessidade, mas é a vida matrimonial e, sobretudo, o nascimento do filho que pesam sobre as mulheres²”.

 

Importante pontuar que a trajetória que o movimento feminista percorreu, até que se disseminasse a ideia de que a maternidade é um obstáculo à libertação feminina, justifica esse conflito.

É nos anos 60 que se inicia a segunda onda feminista³, em que mulheres – grande parte influenciadas por Simone de Beauvoir – não satisfeitas com a igualdade formal antes conquistada, passam a lutar também pela igualdade material. Apesar da igualdade garantida em lei, as mulheres ainda pertenciam de fato aos seus maridos, visto que dependiam economicamente deles.

O caminho para a equidade seria, então, a conquista do espaço público. O trabalho remunerado foi o meio encontrado para se alcançar a efetiva liberação das mulheres⁴. No entanto, o cuidado com a casa e com os filhos se mostrou como um entrave para estas conquistas e acabou por triplicar a jornada da mulher.

À medida que historicamente a mulher vai conquistando a igualdade formal perante o homem, a ideia de mulher maternal vai novamente ganhando força. O mito do instinto materno, que sugere que todas as mulheres têm capacidade e vontade inata para a maternidade, cresce conforme as conquistas feministas se apresentam. Controlar as mulheres inculcando-as a ideia de que são rainhas do lar e as melhores cuidadoras para os filhos com o intuito de que se abstenham de conquistar o espaço público é um grande trunfo do patriarcado.

Analisando períodos históricos, constata-se que a relação direta da mulher com a maternidade nem sempre foi tão forte. Inclusive, desde o século XIII era muito comum que bebês de famílias aristocratas fossem enviados para os cuidados de amas de leite. A função da mulher na aristocracia era a da procriação, para manutenção do nome e dos bens de família, e de cumprir obrigações sociais, tais como participar de eventos da alta sociedade.

O costume de não ficar com seus bebês entregando-os às amas de leite popularizou-se entre a burguesia no século XVIII. E era símbolo de status social não se preocupar com questões maternas.

Ocorre que esse desprendimento em relação à maternidade foi muito prejudicial às crianças, Elisabeth Badinter afirma que na sociedade francesa do século XVIII “a mortalidade das crianças com menos de 1 ano era visivelmente superior a 25%, e aproximadamente uma em cada duas crianças não chegava aos 10 anos⁵”.

Portanto, o modelo ideal de maternidade é moldado de acordo com as ambições da sociedade o qual faz parte e quase nunca está relacionado com a preocupação real com o bem-estar da criança. Por isso, almejar ser uma mãe ideal ou mesmo uma boa mãe é uma grande armadilha, visto que foca-se na mulher e se esquece de pensar nas verdadeiras demandas da criança.

A presunção de que nascemos prontas para sermos mães é uma das responsáveis pelo sentimento de culpa que assola a maioria das mulheres, porque não se sentir dotada dessa capacidade inata acaba por minar a confiança das mães perante seus bebês. O instinto materno não existe, tanto é verdade que psicanalistas do mundo todo comprovam que a infância é uma fase traumática, muito por conta da negligência na criação. Se realmente ser mãe fosse um dom inato, erros seriam exceções e toda criança seria bem cuidada e respeitada. Contudo, o exercício de maternar nada mais é do que um aprendizado de alteridade, recheado de erros e acertos.

E foi com a certeza de que o destino final de toda mulher não se encerra necessariamente na maternidade, que as feministas representantes da segunda onda encaram os filhos como obstáculos à liberação da mulher, em que a maternidade é vista como uma forma de servidão. E deste discurso nasce o conflito entre maternidade e feminismo. Mas precisar ser assim?

 

Empreendendo o cuidado coletivo

Em toda a nossa história, poucas são as civilizações que compartilham igualmente entre todos os cuidados com as crianças. Entre indígenas e tribos africanas é muito comum que as crianças sejam responsabilidade de todas as mulheres da aldeia. Essa divisão, ainda que não igualitária porque não costuma contar com homens, já torna o exercício da maternagem mais fácil e acolhedor do que a realidade atual, em que mães devem dar conta sozinhas, no melhor (ou seria pior?) estilo do “quem pariu Mateus que o embale”.

Porem, parto do princípio de que se o instinto materno é uma grande falácia, qualquer pessoa estaria apta para os cuidados com a criança. Sendo assim, primeiramente me ocorreu a urgência da necessidade de convocarmos o homem para ocupar o espaço privado. Ora, neste blog, temos apenas cerca de 3% de homens leitores! É incontroverso o fato de que homens se eximem do cuidado e sobrecarregam as mulheres, independente da condição social que se encontram.

Contudo, após debater e refletir bastante sobre o assunto, acho que seria inócua essa convocação. Afinal, como quero que o homem assuma o espaço privado se tenho que pegar-lhe pela mão e introduzir no debate? Acredito que a forma mais efetiva de se pensar sobre cuidado seria começar a questionar os papéis de cuidadores. Até que ponto alguma tarefa precisa ser necessariamente da mãe? Qual a figura do pai da relação? E, indo mais além, essa relação precisa ser mesmo triangular?

Quando se coloca o debate sob esse ponto de vista, fica claro que estamos falando de relações heteronormativas, mas precisamos abarcar aqui também outras formas de cuidado. E é aí que entra a beleza das relações homoparentais ou mesmo onde o cuidado compartilhado é uma realidade. Porque nestas relações se torna muito mais fácil se introduzir a discussão acerca do esvaziamento de papéis. Ou seja, em que o vínculo necessário ao desenvolvimento infantil pode ser formado por qualquer pessoa independente do seu gênero.

Imperioso salientar que o bebê recém-nascido possui a necessidade fusional. É muito importante para o seu desenvolvimento que nos primeiros meses exista um cuidador principal disposto a integrar essa díade, e concordo que a melhor pessoa para ocupar esse espaço seja a mãe.

E isto não apenas por conta da importância da amamentação, mas porque o pós-parto prepara a mulher, através da produção de hormônios, para que exista uma pré-disposição para ocupar este lugar. Donald Winnicott chama esse estágio de “preocupação materna primária”6. No entanto, considerar o efeito dos hormônios sobre o corpo da mulher bem como o tempo de sua duração não significa respaldar o determinismo biológico que preconiza que somente a mãe biológica poderá integrar o processo fusional com o bebê.

Ainda, compor a díade mãe-bebê é algo tão intenso e avassalador que se torna indispensável contar com uma rede de apoio, sob pena de se desenvolver um baby-blues podendo evoluir até mesmo para uma depressão pós-parto.

Portanto, ainda que o cuidado não seja direto com o bebê, é necessário que haja alguém para cuidar da mãe e realizar as atividades domésticas e esse papel pode e deve ser desenvolvido pelo companheiro e pai da criança. Assim como, por outra pessoa que tenha essa proximidade com a mãe, como por exemplo, sua companheira.

Ainda, para além dos cuidados nos primeiros meses, a fim de evitar a sobrecarga materna, é urgente a reivindicação pelo cuidado coletivo. Cuidar coletivamente é pensar a criança como uma responsabilidade social, promovendo condições para o desenvolvimento da criança. E este desenvolvimento não se dá de maneira plena quando a responsabilidade é delegada exclusivamente a uma só pessoa.

Portanto, o cuidado coletivo pressupõe além da participação do homem no espaço privado, também ao acolhimento da criança no espaço público. E aqui não me limito apenas à figura do pai, e incluo também o avô, o irmão, o tio, o amigo. Somente com a participação ativa de TODOS nos cuidados com a criança é que se pode esperar uma mudança na esfera legislativa, corporativa e social. Enquanto os cuidados continuarem a ser delegados às mulheres, a maternidade continuará a aprisionar. Afinal quem consegue tempo e disposição para realizar seus anseios pessoais tendo que cuidar da casa e dos filhos sozinha?

A proteção à infância perpassa também o suporte dado a seus cuidadores. Portanto, não há como falar em cuidado coletivo, sem mencionar a necessidade de uma legislação que assegure licenças parentais e que garanta aos cuidadores leis trabalhistas que permitam o exercício da maternagem ao mesmo em que a carreira não seja prejudicada.

Porque quando só as mães podem gozar da licença (ainda que ínfima) e somente a elas recai a responsabilidade pelo cuidado há uma evidente discriminação entre as funcionárias e funcionários. Essa polarização é também um dos motivos delas perceberem remuneração inferior a deles e de terem mais dificuldade em crescer na carreira e, levando em conta esse cenário, são elas que preferem abandonar a profissão para se dedicar à criação dos filhos.

Além disso, entender a infância como um dos pilares mais essenciais da vida em sociedade fomenta o debate quanto à responsabilidade que cada pessoa tem em relação aos filhos dos outros. Seja acolhendo a amiga que passa pelo puerpério, pensando se o horário e o local da festa são apropriados para os filhos dos amigos convidados, oferecendo um local para que a mãe possa amamentar, intervindo em caso de violência contra a criança, pensando em locais acolhedores para receber os filhos de mães estudantes e/ou militantes, olhando com empatia para aquela criança que chora no avião/mercado/fila/restaurante. Enfim, poderia listar uma série de situações cotidianas que excluem as crianças do espaço público e, assim consequentemente, seus cuidadores.

Por todo o exposto, que não consigo dissociar o feminismo da maternidade tampouco a maternidade do feminismo. Descontruir o conceito iconoclasta da maternidade já é uma tarefa exaustivamente trabalhada por feministas, agora é preciso, além disso, pensar também nas crianças de modo a empreender o cuidado coletivo visando o bem estar delas e a felicidade de suas mães. Porque ou a revolução será feminista, ou não será.

 

1-           Importante ressaltar que a maternidade pode representar uma prisão para àquelas mulheres que puderam um dia gozar de liberdade. Porque é necessário falar que nem todas têm acesso ao estudo formal, nem todas enfrentam o conflito de escolher entre carreira e filhos porque não lhes é dada essa opção. Falar em escolhas é sempre falar do alto de algum privilégio e reconhecê-los é enxergar que estamos rodeados de possibilidades desiguais.

2-           Badinter, Elisabeth. O Conflito: A mulher e a mãe. Kindle Edition. Posição 224

3-           A primeira onda feminista surgiu no final do século XIX e perdurou até o início do século XX. Naquela época, mulheres eram consideradas incapazes, pertencendo ao pai quando solteiras e, após o casamento, aos seus maridos, quase como uma transmissão de posse. Os casamentos eram arranjados e a mulher não tinha qualquer direito político. Assim se inicia a luta por igualdade de direitos e pelo sufrágio feminino. Como disse Simone de Beauvoir: “É a primeira vez na história que se vê as mulheres tentarem um esforço como mulheres”. As conquistas foram diferentes em cada país: enquanto as mulheres neozelandesas podiam votar em serem votadas em 1893, igual direito somente foi conquistado pelas brasileiras em 1932.

4-           Tanto a primeira como a segunda onda feminista foram movimentos compostos por uma parcela bem específica de mulheres: aristocratas e burguesas primeiramente e de classe média posteriormente. É inegável o fato de que o capitalismo precisava de mão de obra e muitas mulheres trabalharam em fábricas com o advento da revolução industrial, bem como mulheres negras já exerciam trabalho remunerado muito antes destes eventos – ainda que boa parte deste trabalho fosse de atividades domésticas e cuidados com as crianças, portanto, ainda restrito ao ambiente privado. Ainda, o discurso hegemônico conta a história do feminismo europeu e estadunidense, no entanto, não se pode olvidar que mulheres do mundo inteiro se organizam e lutam pela equidade de gênero.

5-           Badinter, Elisabeth. O Conflito: A mulher e a mãe. Kindle Edition. Posição 2.577

6-            “Gradualmente, esse estado passa a ser o de uma sensibilidade exacerbada durante e principalmente ao final da gravidez. Sua duração é de algumas semanas após o nascimento do bebê. Dificilmente as mães o recordam depois que o ultrapassaram. Eu daria um passo a mais e diria que a memória das mães a esse respeito tende a ser reprimida”. WINNICOTT, D. Da Pediatria à Psicanálise: Obras escolhidas. Rio de Janeiro, 2000. P. 401

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segunda-feira, 29 de maio de 2017

Aborto na Alemanha: como acontece quando não há crime


Na Alemanha, assim como em outros países europeus, a interrupção voluntária da gravidez é permitida até a 14ª semana de gestação. Não é necessário justificar essa escolha, contudo, a gestante deve ser atendida por um serviço de aconselhamento antes de se submeter ao aborto.

A legalidade acaba por diminuir o moralismo que cerca o tema. E, há uns meses, me deparei com esse relato de aborto vivenciado por uma alemã. Chamou-me a atenção a maneira como ela consegue falar sobre sua decisão de forma honesta e podendo compartilhar com pessoas próximas todo o sentimento envolvido neste período.



Abortos acontecem independente da origem, raça, credo e idade da mulher. Acontecem também em lugares em que a prática é criminalizada e moralmente reprovada. Criminalizar a conduta em nada diminui a sua incidência, ao contrário, mulheres acabam morrendo ao se submeterem a procedimentos realizados na ilegalidade. O aborto é hoje, no Brasil, uma das principais causas de mortalidade materna. A legalização acaba por quebrar um tabu em torno do tema e possibilita que as mulheres possam decidir baseadas em um estrutura que lhes dê apoio.

Por achar muito importante que este tema seja debatido e que se possa conhecer a realidade em outros países é que eu fiz essa tradução de um relato publicado no jornal alemão Die Zeit.




ABORTO: “EU VOU TIRAR ISSO”

Duas listras rosas deixaram a vida de Lea Johnens* confusa. Ela está grávida. E tem que decidir, o que ninguém pode decidir por ela. Nove momentos de um aborto”. Nome alterado.


O SEXO
Abortar? Nunca. Até durante os estudos, é possível ser mãe. Isso era o que eu pensava – até ficar grávida. Aconteceu em 23 de dezembro. Meu namorado e eu normalmente usávamos camisinha. Só dessa vez que não. Nós nos descuidamos, assim como as pessoas às vezes se descuidam. Eu havia voltado há poucos dias do meu estágio de Berlim para Colônia. Lucas* e eu pouco tínhamos nos visto e brigávamos muito ao telefone. No Natal nos aproximamos um pouco de novo. Por isso eu sei exatamente a data.


A NOTÍCIA
Depois do Natal, eu tinha muita energia. Quase não precisava dormir, pela primeira vez em anos eu não tinha mais enxaqueca. Não importava o que eu fizesse, o quanto eu bebesse – nenhuma dor de cabeça. Hoje eu acredito que eram os hormônios. Neste período, eu fiz coisas completamente malucas, como dirigir durante quatro horas no Ano Novo para uma festa em Berlim às cinco horas da madrugada. E voltar no mesmo dia. Eu comi Currywurst[1], embora eu seja vegetariana há anos. E logo depois fiquei faminta por Mon Chéri[2]. Como no filme. Foi então que me veio o pensamento que alguma coisa estava estranha. Eu escrevi no meu diário: “Se eu estiver grávida, seria o horror”. Na manhã seguinte, eu fui a farmácia e comprei um teste de gravidez. Apenas por segurança. Eu fiz o teste sozinha no banheiro. Eu sabia como funcionava porque já tinha feito há alguns anos. Com uma diferença: desta vez apareceram duas listras – positivo.


OS PENSAMENTOS
Eu mal podia respirar. Na minha cabeça, de repente, apareceram imagens: eu com bebê, meu namorado, nós como pais. E sempre o pensamento: “Merda, o que eu faço agora?”. Em pânico, eu chamei minha melhor amiga. Ela veio imediatamente com um segundo teste. Ele também deu positivo. Eu corri pela casa, puxando os cabelos e gritando: “Eu não quero ter um filho com o Lucas! Eu não quero ter um filho sozinha! Eu não quero ter um filho de jeito nenhum!”. Naquele tempo, eu morava no sótão de uma casa antiga sem aquecedor, apenas com aquecedor à carvão na sala. Eu imaginava como eu iria subir as escadas com um bebê em um sling e ficar sozinha em um quarto frio. Eu tinha 25 anos, estava no meio dos estudos e não tinha ideia de como queria começar minha vida. Meu namorado e eu havíamos acabado de dar um tempo. Ele havia me traído nas férias de verão, e eu tinha beijado outra pessoa em Berlim. Nós ficamos juntos depois do Natal e esperávamos que fossemos nos aproximar de novo. Mas ambos não acreditávamos de verdade naquilo. E tentar novamente por uma criança seria um motivo ruim.

Minha amiga ficou quieta. Ela me aconselhou a ligar para um ginecologista. A atendente disse: “Ah, que bom. Então venha na terça da próxima semana. E se sua barriga puxar um pouco, é normal. Ela está se expandindo”. A assistente do médico falou comigo como se estivesse falando com uma mulher grávida. Eu não me sentia assim, tampouco queria isso. Eu murmurei “okay”, desliguei e procurei no Google outro médico próximo a mim. Desta vez, fui direto ao ponto: “Eu estou com uma gravidez indesejada e preciso de uma consulta imediatamente”. À tarde eu estava na sala de espera do consultório. Eu sentia as puxadas que a assistente havia me falado ao telefone.


A VISITA AO MÉDICO
 Uma bolinha no monitor da ultrassonografia: “Este é o feto”, disse o médico. “Você está na sétima semana”. Como eu não ri, ele desligou o monitor rapidamente. Eu deveria pensar sozinha se eu queria a criança, disse ele. O importante é apenas: até a nona semana de gestação eu poderia abortar com um comprimido, depois disso eu precisaria de uma intervenção com anestesia geral. Eu engoli a seco. Antes de ir ele ainda me perguntou se eu tinha um companheiro. “Eu também não sei isso agora”, falei. Então ele me deu um conselho: Eu só deveria falar com Lucas, quando eu soubesse o que queria. “É seu corpo, sua decisão e você aguentará as consequências”, ele disse. Eu fiquei surpresa. Meu primeiro impulso seria ligar para meu namorado. Eu refleti: Lucas era 14 anos mais velho que eu. Ele desejava um filho. Eu decidi não dizer nada a ele por enquanto.


A DÚVIDA
Nos dias seguintes, eu falei com minha melhor amiga, meu irmão e minha irmã. Não consegui contato com minha mãe. Ela estava na Suíça – em um retiro silencioso, em que celulares eram proibidos. Eu achei um número na internet e finalmente consegui falar com ela ao telefone. A sua opinião era muito importante para mim. Também porque ela mesma já tinha abortado. Eu sabia que ela não me julgaria. Ela disse: “Se você quiser ter o filho, eu estarei lá por você. E se você não quiser, também”.
Meu pai pensava diferente. “Você não deve abortar”, dizia ele. “Você nunca vai se perdoar”. Sua voz soava dura e isso me machucava. Desde criança eu tinha medo de brigar com meus pais. Eu tentava frequentemente me dar bem com as pessoas, porque não queria decepcioná-las. Desta vez não seria diferente.
  
Cinco anos antes eu já havia acompanhado um aborto da minha melhor amiga na época. Ela tinha 20 anos, grávida e achava que era muito nova para um filho. Ela morava comigo. Depois da operação, ela teve hemorragia. Eu fui com ela ao pronto socorro. Para ela, o aborto foi uma decisão errada. Ela chorava e sempre dizia: “Eu quero meu filho de volta”. Eu tentava consolá-la e tive que ver o seu sofrimento. Eu tinha que pensar agora naquele momento. Eu não queria que me acontecesse também.
  
Antes de se poder abortar na Alemanha, deve-se passar por um “conselheiro de grávidas”. Eu marquei uma consulta no pro família[3]. Na manhã antes da consulta, ao acordar, eu pensei: Okay, eu vou ter essa criança. À tarde, a atendente do pro família me explicou que eu poderia solicitar um apoio financeiro, se eu tivesse um filho. E como funciona um aborto. Ele me perguntou sobre planos para o futuro, sobre meu namorado, sobre a universidade. De maneira muito neutra e sem tentar me influenciar. A conversa correu bem, mas depois o sentimento ruim voltou. Para mim ficou claro: era a primeira vez em minha vida que ninguém poderia me dizer o que é certo ou o que é errado.


A DECISÃO
Eu me sentia realmente mal. Também fisicamente. A energia das primeiras semanas havia desaparecido. Eu tinha que vomitar a todo momento, estava cansada e fraca. Ficava deitada por horas no sofá, colocava minhas mãos sobre a barriga e tentava senti-lo em mim. Eu tentava construir uma conexão com o que estava em mim. Para mim, não era apenas um amontoado de células, mas uma forma de vida. Apesar disso, não considerava o aborto como assassinato. Talvez alguns não consigam entender, mas para mim foi assim. Eu pedia perdão em pensamento. Finalmente, escrevi no meu diário: “Eu tenho a sensação que isso é okay.”

Eu liguei para meu namorado e pedi que ele viesse. Nós não nos víamos havia dias. Lucas não teve tempo de tirar seu casaco e eu disse: “Eu estou grávida mas não vou ter o bebê”. Eu tive medo da sua reação. Que ele pudesse ficar furioso ou sair correndo. Mas em vez disso ele ficou triste e magoado. Porque ele queria aquele filho e não tinha chance de mudar minha decisão. No final, ele disse: “Eu acho isso realmente uma merda, mas se você quer assim, eu aceito isso”. Ele pediu também para me acompanhar no médico. No dia seguinte, marquei uma consulta.


O COMPRIMIDO
Eu fiquei surpresa como tudo correu de forma banal. Eu mostrei para o médico o documento do pro família. Ele perguntou: “Você tem certeza?” Eu assenti, ele me deu dois comprimidos. Um dele eu deveria tomar no consultório. “Ele interrompe o desenvolvimento do embrião”, disse ele. O segundo, eu tomaria três dias depois. “Ele assegura que o útero consiga expelir o tecido”. Um gole de água, um aperto de mão, e eu já podia ir. Eu tive que chorar ali fora. Não porque eu queria voltar atrás de minha decisão, mas porque correu tudo muito rápido. Quando o Lucas me buscou pela manhã, eu estava muito ansiosa. Agora me sentia vazia. Lucas me pegou pelo braço e nós bebemos café juntos. Então ele me trouxe para casa. Foi bom que ele estivesse junto.

Um dia depois minha mãe chegou da Suíça. O médico havia dito que alguém deveria cuidar de mim por conta da hemorragia. Minha mãe trouxe flores e uma vela. Eu estava tão feliz em vê-la.


O SANGUE
Quando eu tomei o segundo comprimido, não durou nem meia hora para que o sangue viesse. Vermelho vivo, com pedaços de tecido. Era tanto. Eu sabia que sangraria, mas não tinha ideia de quão forte seria. Eu não deveria usar absorvente interno, aquilo tinha que sair. Eu estava usando absorvente, mas alguns minutos depois, meu sofá estava todo manchado de sangue. O pior foi que eu tive ainda que vomitar. Os analgésicos não funcionaram, eu gemia, ficou tudo escuro. Durante uma hora eu pensei que fosse morrer. Nunca sofri tanto. Minha mãe ligou para o médico. Ele disse que não era comum. Mas foi porque os analgésicos não pararam em meu estômago. Minha mãe comprou supositórios na farmácia. Cerca de duas horas depois, a dor diminuiu. Depois de uma semana, o sangramento parou. Eu tive que descansar. Também do choque. Eu não imaginei que vivenciaria o aborto fisicamente, quando eu tomei os comprimidos de hormônio. Ainda tive que ir mais uma vez a uma consulta de controle. Esta foi a última vez que estive no consultório.


A LEMBRANÇA
O aborto aconteceu há três anos. No primeiro aniversário, eu escrevi em meu diário: “Hoje tive um sentimento em particular. Como se ‘aquilo’ tivesse aniversário”. Era na verdade um dia de morte. Mas não sentia, em absoluto, desse jeito. E sim como uma despedida de uma possibilidade.

Agora, eu tenho um novo namorado. Desde algum tempo venho me perguntando com mais frequência como seria ter um filho. A minha imagem de mãe não me traz mais medo. Ao contrário. Mas: nunca me arrependi da minha decisão.

*Nome alterado.



[1] Salsicha temperada com curry. Comida típica de Berlim.
[2] Pequenos bombons recheados com cereja e licor.
[3] Sociedade Alemã de Planejamento Familiar, educação sexual e aconselhamento sexual.
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quarta-feira, 23 de novembro de 2016

De salvador de mulheres a mártir: A mentira do GO humanizado

Ontem saiu a publicação da cassação do seu registro no CRM. Hoje ele já está sendo alçado à mártir do movimento da humanização do parto/nascimento.

E esse texto não é sobre o mérito do processo e sobre as circunstâncias que ele aconteceu, é sobre o posicionamento de muitas ativistas em relação a este fato.

Antes de tudo, parto domiciliar não deveria ser assistido por médico obstetra. Parto não é ato médico. Gravidez e parto não são patologias. O médico somente deveria ser acionado em casos de gravidez de alto risco e intercorrências durante o parto. Um atendimento humanizado deveria, antes de mais nada, ser focado na mulher parturiente (ou em situação de abortamento) e depois em profissionais como a(o) enfermeira(o) obstetra e na doula. A mudança de postura dos médicos que assistem partos deveria ser um reflexo da mudança do sistema, mas não o foco.

Defender a presença de médicos no parto domiciliar é elitista. É elitista demais! Gostam tanto de citar modelos que privilegiam o parto domiciliar como o inglês ou o holandês, mas não se atentam ao fato de que esses mesmo sistemas estão ancorados na valorização do trabalho das parteiras! Médicos não assistem PD’s na Inglaterra nem na Holanda.

Médicos possuem formação intervencionista. Como já dito, eles estão preparados para lidar com intercorrências, com patologias. Se não há patologia, nem intercorrência, não é necessário médico. A sua presença só encarece todo o processo. Por este motivo, não é nem economicamente viável defender que partos domiciliares sejam atendidos por médicos.

Inclusive, o maior problema na assistência ao nascimento no Brasil é a centralização na figura do médico. E esse é o mesmo erro que muitas ativistas do movimento da humanização estão cometendo agora.

E é evidente que a postura dos médicos obstetras deve mudar. É sim necessário que a autonomia da mulher seja respeitada, mas esta é uma briga da humanização da saúde. A horizontalidade entre médico e paciente é uma das pautas desse movimento e abarca todo o sistema médico e não apenas a área ligada à obstetrícia.

Mas, sobretudo, muito me admira a comoção que tal cassação tem gerado. O referido profissional nunca foi de fato humanizado. E nunca foi porque não atende a todas as premissas da humanização do nascimento: medicina baseada em evidências, encarar o ato como evento transdisciplinar e, principalmente, respeitar a autonomia da mulher.

É humanizado aquele abertamente machista? Que não tem vergonha de dizer que o sistema patriarcal salvou as mulheres? E aquele que se coloca como a figura central no atendimento, em evidente confronto à premissa da transdisciplinaridade? Vocês estão lembradas que ele é contra a liberdade contratual da doula né? Que, em suas palavras, doula é como a salada do buffet, vem junto no pacote, comendo ou não...

Ele pode ser um excelente médico. O processo que culminou em sua cassação pode até ter sido injusto. E sua defesa neste sentido é legítima. Mas ele nunca foi humanizado. Transformá-lo em mártir do movimento é um grande erro.

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sexta-feira, 7 de outubro de 2016

O paternalismo que está por trás da Criança Feliz

Século XVIII. França. O cuidado com as crianças não é visto como algo importante. A imensa maioria dos bebês nascidos em Paris é entregue logo após o nascimento para amas[1], retornando à casa de seus pais apenas após a primeira infância. Cerca de 50% dessas crianças não atinge os 10 anos de idade. Os tempos são difíceis e a França precisa de homens para compor o exército, contudo, os jovens sobreviventes do descaso com a infância são em sua maioria pessoas doentes e fracas. Não por acaso, na mesma época surge um movimento de mulheres oriundas da aristocracia e da alta burguesia, denominadas “preciosas”, que começam a refletir sobre questões acerca da igualdade de gênero, fim de casamentos impostos, prazer sexual e, a partir disso, iniciam os questionamentos sobre o papel da mulher dentro da sociedade.

Neste cenário, estes dois fatos são encarados como as ameaças à França patriarcal: não há homens para compor a frente de batalha e as mulheres começam a dar sinais de emancipação.

É então que em 1762, Jean-Jacques Rousseau publica a obra Émile. O discurso trazido neste livro foi uma grande ferramenta para cristalizar ideias de que a família deveria ser fundada com base no amor materno. É um discurso altamente intelectualizado que naturaliza a função doméstica da mulher. Agora, as crianças são novamente cuidadas dentro de casa pelas suas mães. Numa solução que ao mesmo tempo que reduziu a mortalidade infantil também trouxe de volta as mulheres ao espaço privado.

2016. Brasil. O governo lança um programa ironicamente intitulado “Criança Feliz”. Também fundado na suposta preocupação com as crianças, o programa tem por objetivo promover o desenvolvimento infantil. O público alvo será as famílias beneficiárias do Bolsa Família (para gestantes e crianças até 3 anos) e do programa Prestação Continuada (para crianças até 6 anos que foram afastadas de suas famílias por medidas de proteção), portanto de baixa renda, que receberão visitas semanais de técnicos enviados pelo governo e os resultados destas visitas serão condicionantes ao recebimento dos aludidos benefícios. No discurso de lançamento do programa, ouvimos a primeira-dama enaltecer qualidades inatas que mulheres teriam ao exercer o papel de mãe. Além disso, ela se comprometeu a conversar com outras primeiras-damas e prefeitas sobre o programa, em uma explícita exclusão a participação de homens no que tange o cuidado com as crianças. Uma boa análise do discurso do lançamento deste programa pode ser lida aqui.

Foto de André Coelho

Três séculos depois. Países diferentes. Mas o mito do instinto materno é novamente usado para reforçar a ideia de que mulheres são maternais, que o seu lugar biológico é no cuidado. Mulher como primeira-dama e não como governante. Homens no espaço público e não se preocupando com os cuidados na infância. Não é pelas crianças. Nunca foi pelas crianças. Trata-se sempre de controle social. De medidas que docilizam, submetem e conformizam individualidades. Parece exagero? Então analisemos o programa Criança Feliz.

A motivação do programa foi resumida da seguinte forma:
"Estudos longitudinais de acompanhamento da população ano após ano mostram que as habilidades mais importantes se organizam muito cedo, depois elas têm mais dificuldade de se organizar, de se estabelecer. Então, o impacto que tem uma infância bem cuidada é enorme no desenvolvimento, na aprendizagem, na escola, no sucesso profissional, nas competências que o ser humano vai ter no restante da vida. Por isso que é importante a gente acoplar esse programa com o programa que trata com a população mais vulnerável, o Bolsa Família para poder impactar a longo prazo e essas famílias saírem da condição de pobreza, a longo prazo, quando seus filhos tenham um desempenho profissional melhor que o deles e ajuda toda a família a sair [da vulnerabilidade]."

Portanto, o programa foca em “habilidades importantes” que em um primeiro momento não traz um sentido muito preciso, mas que após se traduz também em “sucesso profissional”, lembrando que o público alvo do programa é a “população mais vulnerável”. Que tipo de programa é esse que tem dentro de suas principais medidas o acompanhamento SEMANAL e DOMICILIAR da população de baixa renda com fim de promover sucesso profissional nas crianças??? Ainda, importante destacar que a apresentação do projeto foi voltado às mulheres, sempre apelando para o mito do instinto materno, e inclusive convocando apenas mulheres da administração para compor o comitê que traçará os rumos do programa.

Este programa evidencia que o governo entende que a responsabilidade pelas crianças é exclusivamente das mães e que estas, por serem pobres, se mostram incapazes de cuidar de seus filhos. Escancaradamente, trata-se de um programa paternalista que sem ao menos ouvir essas mulheres, dita mecanismos que irão influenciar diretamente nas suas vidas. Não há outra explicação. Se houvesse, estaríamos falando em programas que incentivassem a participação dos homens na criação dos filhos através da criação da licença parental ou mesmo da ampliação da licença paternidade. Ou então em programas que investissem na criação de creches com educadores bem remunerados e com estrutura para atender bem as crianças. Ou mesmo algum investimento em transporte público de modo que os pais não perdessem tanto tempo no trajeto casa-trabalho. Poderia ser também um programa que garantisse saneamento básico e uma estrutura de moradia que garantisse a saúde dessas crianças. Ainda, se o problema fosse dificuldade no acesso à informação e apoio, que se investisse na contratação de médicos da família, de psicólogos e de assistentes sociais que estivessem à disposição quando procurados e não que estas visitas fossem feitas de maneira invasiva e obrigatória como se está sendo proposto.

Mas quando o governo entra SEMANALMENTE na CASA da população pobre com fim de orientar a MULHER sobre a criação dos filhos, a mensagem que temos é que a única responsável pela criação dos filhos é a mãe. Que os pais não são foco do programa, tampouco a estrutura da cidade importa para que as crianças cresçam em segurança, tanto afetiva como material. Ou seja, o programa isenta o GOVERNO e os HOMENS dos cuidados com os filhos e implanta um projeto PATERNALISTA[2] que culpabiliza mulheres pobres e mães. Culpabiliza porque o programa é focado em um atendimento pedagógico à mulher mãe fazendo crer que qualquer “desvio” na conduta dos seus filhos advém de algum desvio na sua própria conduta. Como se a falta de estrutura, a qual deveria ser prestada pelo Estado, não fosse o principal causador de lesões aos direitos das crianças.

Criança Feliz nada mais é do que um programa de controle social, que tem por fim garantir a conformidade do comportamento dos indivíduos, com traços tão poucos sofisticados que fariam Michel Foucault ruborizar.

E é também um programa que fere a autonomia da mulher periférica, em sua maioria mulheres negras. Além de não terem direito sobre o próprio corpo - já que o aborto é ilegal e inseguro para as mulheres pobres-, além de serem torturadas no momento de parir - em vista das práticas normatizadas de violência obstétrica seguidas pela maioria dos hospitais públicos-, agora essas mulheres receberão visitais semanais de agentes do governo que lhe dirão como devem criar seus filhos!

E concordo com o discurso de Marcela Temer quando diz que a infância é uma fase fundamental da vida de qualquer ser humano. Concordo também que deva ser um programa voltado ao atendimento das mulheres, já que elas são maioria das beneficiárias do Bolsa Família e frente ao tão frequente abandono paterno. Contudo, há maneiras de atender a primeira infância sem imputar às mulheres a função exclusiva no cuidado e sem ferir a sua autonomia. É possível também olhar para a criança desde o nascimento enquanto ser humano portador de direitos e não apenas como um devir, um projeto de investimento.

É preciso apoio e estrutura para conseguir criar os filhos. Não será através da tutela das mulheres periféricas que as crianças terão uma infância com mais amparo. O posto de belas, recatadas e do lar foi muito bem aceito a três séculos, masnão hoje. Não. Hoje não passarão!




[1] 1780: o tenente de polícia Lenoir constata, não sem amargura, que das 21 mil crianças que nascem anualmente em Paris, apenas mil são amamentadas pela mãe. Outras mil, privilegiadas, são amamentadas por amas-de-leite residentes. Todas as outras deixam o seio materno para serem criadas no domicílio mais ou menos distante de uma ama mercenária. (BADINTER,1981).
[2] Paternalismo, em sentido lato, é um sistema de relações sociais e trabalhistas, unidos por um conjunto de valores, doutrinas políticas e normas fundadas na valorização positiva da pessoa do patriarca.
Em sentido estrito, o paternalismo é uma modalidade de autoritarismo, na qual uma pessoa exerce o poder sobre outra combinando decisões arbitrárias e inquestionáveis, com elementos sentimentais e concessões graciosas.
Para o Direito Constitucional, o Estado paternalista é aquele que limita as liberdades individuais dos seus cidadãos com base em valores axiológicos que fundamentam as imposições estatais. Desta maneira, se justifica a invasão da parcela correspondente à autonomia individual por parte da norma jurídica, baseando-se na incapacidade ou idoneidade dos cidadãos para tomar determinadas decisões que o Estado julga corretas. (Fonte: Wikipedia)
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segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Por que ser mãe na política incomoda tanto?



A maternidade e a defesa da infância estão em pauta este ano na campanha eleitoral à Prefeitura de Curitiba e vem sendo trazidas pela candidata do PSOL, Xênia Mello. E, além disso, essas questões têm sido abordadas de maneira bastante honesta e política. Sim, política no sentido de afirmar que a maternidade e a infância são pautas que DEVEM fazer parte da vida política, sendo pensadas e consideradas em todas as decisões nas esferas legislativas e administrativas.

Desde sua última campanha em 2014, Xênia já fazia questão de mostrar que a maternidade era uma de suas pautas e como feminista que é nunca deixou de lado a máxima: o pessoal é político!



Ocorre que na atual campanha tenho visto muitas críticas em relação ao discurso que a Xênia adotou. Embora ela também afirme repetidas vezes que é negra e tem origem periférica, o que parece mesmo incomodar é sua condição de mãe aliada as falas tão frequentes sobre seu filho. Ora, ainda que as questões raciais e de classe sejam quase sempre silenciadas nos debates políticos, é sintomática a invisibilização das mulheres mães.

Quem a crítica pelo discurso ainda não entendeu que a maternidade e a infância devem ser pautas políticas. Não entendeu que durante toda a história da sociedade moderna, a maternidade foi um grande trunfo para manter as mulheres afastadas da vida pública e, principalmente, da vida política.

Reivindicar a luta política quando exercida em concomitância à maternidade é algo histórico e muito corajoso. É um grito solitário em meio a uma política feita majoritariamente por homens.

Quando uma mulher se dispõe a participar ativamente da vida política e ao mesmo tempo assume a maternidade, ela rompe com vários estigmas e etiquetas sociais que são usadas justamente para evitar que as mulheres tomem as rédeas das decisões políticas. Aliás, o instinto materno é um mito alimentado toda vez que as mulheres passam a se conscientizar dos prejuízos que lhes são causados em virtude da ausência de representação política. Faz-se acreditar que as crianças devem ser sempre cuidadas em período integral pela mãe, que ela é a melhor cuidadora para os filhos e que está biologicamente preparada para isto. Ora, cuidar de crianças é algo extremamente exaustivo quando a tarefa é realizada de modo solitário. Incumbir essa atividade exclusivamente às mulheres é um meio eficaz de afastá-las da política.

Ou seja, a ideia de que maternidade e política são esferas inconciliáveis só favorece àqueles que não querem que mulheres participem das decisões políticas. Ironizar o fato de que uma candidata fala exaustivamente sobre seu filho e sua maternidade é combustível para silenciar uma pauta tão importante e tão necessária às mulheres e às crianças.

E é justamente essa a importância de termos uma candidata que não cansa de afirmar que é mãe e que não faz essa afirmação de maneira demagógica, o que é tão comum na política. Geralmente quando as crianças são citadas em campanha eleitoral, são utilizadas como instrumento para enaltecer supostas virtudes do candidato. São comuns as imagens de políticos carregando crianças em horário eleitoral ou mostrando sua rotina em casa ao lado dos filhos. A criança nada mais é do que um token e nunca protagonista do discurso.

E este tipo de imagem nunca foi utilizado pela Xênia. Ao contrário, a imagem de seu filho transcende o espaço privado quando ela afirma que ele frequenta a creche municipal, que utiliza o transporte público, e quando fala de sua própria infância na periferia de Curitiba, sempre tão esquecida nos projetos políticos.

Posso afirmar porque conheço a Xênia há um bom tempo. Sua vida é coerente ao seu discurso político. Sua maternidade é exercida de forma coletiva de maneira a responsabilizar a todos pelos cuidados com as crianças. É disso que a cidade precisa: que a responsabilidade pelos cidadãos e, sobretudo, pelas crianças seja de todos. Que a cidade seja feita e pensada para as pessoas. Que as crianças e as mães possam sair do espaço privado e tomar a cidade.

A Xênia Mello é a única candidata que reivindica o direito à cidade para as crianças e encerro com as suas palavras que transmitem um desejo que eu também compartilho como mulher e mãe:

“A gente precisa construir formas de viver e construir a política que acolha e inclua as crianças, em respeito à sua autonomia e concebendo-a como cidadãs inclusive tomando-as como produtoras da política e não apenas como seres tutelados e objetos de submissão da vontade dos adultos. É nesse mundo que acredito, é por esse mundo que eu luto!

E para quem critica, reafirmo: vai ter mãe feminista na política sim e vai ter discussão acerca dos direitos da criança também! 


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segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Todas nós somos mães abusivas

Todas nós somos mães abusivas. Em maior ou menor grau, todas acabamos por abusar do poder de autoridade que nos é investido assim que nos tornamos mãe. E não porque essa seja uma condição inata da maternidade, e sim porque a característica iconoclasta a qual o papel de mãe foi alçado é algo inatingível. Tentar dar conta do papel de mãe que nos é imposto acaba, quase que inevitavelmente, em impingir abusos aos filhos que estão sob nossa autoridade.

A exclusividade do cuidado delegada às mães é algo que investe tanto poder numa atividade que nunca poderia ser exercida por uma só pessoa. Cuidar deveria ser sempre um verbo conjugado no plural. Dar conta de uma ou mais crianças é uma atividade tão exaustiva que exercê-la sozinha é uma missão fadada ao fracasso. Porque cuidado que é exercido por uma só pessoa exige que ela renuncie a todas as suas outras características para se tornar apenas cuidadora. Deixa-se de ser mulher para assumir apenas a condição de mãe.

Imagem do filme "Coraline"

E quando falo nessa exclusividade do cuidar não me refiro apenas às mães solteiras, falo do papel de mãe que nos é apresentado hoje. Falo da mentira do instinto materno, que hipocritamente presenteia mulheres com um dom único, o de cuidar. Eleva-as à posição da sacralidade. Preenche de maneira plena sua feminilidade. Em contrapartida, deixa homens livres para se eximirem do cuidado e tomarem o espaço público, já que para conquistar o título de bom pai basta que se troque fraldas.

Por outro lado, a figura da boa mãe é tão perfeita que dificilmente se conhecerá alguma, todavia, ludibriadas pelo mito do amor materno, estaremos todas dispostas a acreditar que possamos também conquistar tal título. E nesta busca cruel pelo reconhecimento fazemos reféns as crianças.

Qualquer comportamento supostamente reprovável de uma criança é logo imputado à maneira como a mãe educa. Sendo assim, filhos saudáveis, gentis e articulados seriam a prova de que a mãe fez um bom trabalho. Seriam, porque na falha a mãe será sempre a culpada, mas no êxito as causas são diversas.

E como conseguir filhos espelhos? Como fazer deles a prova de que passamos no teste da boa mãe? Doutrinando. E toda doutrina, seja ela deliberada ou não, vem marcada por abusos e excessos.

Portanto, não é a maternidade que é eivada de abuso, e sim a forma como exigimos que ela seja exercida que cria um ambiente favorável a ele. Mudar a forma como lidamos com a maternidade e, consequentemente, esvaziar o papel que atribuímos à mãe se mostra urgente.

O esvaziamento do papel de mãe é algo libertador não só para mulheres como também para seus filhos. A pluralidade no cuidado liberta a mulher para ser além da maternidade. Fornece à criança ferramentas para poder diferenciar práticas de cuidado abusivas das respeitosas. Porque saber reconhecer a violência consiste em um bom sinal de sanidade. Porem, quando se vive em um único ambiente, naturaliza-se as práticas ali exercidas, como se não houvesse realidade além daquela. Vivenciar a pluralidade, para além de outros benefícios, faz com que se crie um repertório capaz de reconhecer o abuso.

E é também por isso, que venho me convencendo que a forma como encaramos a maternidade hoje não só aprisiona as mulheres, mas também a seus filhos. Que a responsabilidade pelo cuidado não seja exclusiva de ninguém, que seja coletiva. Que não seja um fardo, que seja terno.
Este texto se originou após reflexão sobre este texto que, por sua vez, surgiu em virtude deste outro.
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sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Quando a birra vira patologia

Novamente viralizou pela internet um vídeo que expõe uma criança. Desta vez, tratava-se de um menino negro de 7 anos, aluno de uma escola municipal. Durante um acesso de raiva, o menino foi filmado por uma educadora e o vídeo publicado na internet. Sem qualquer sinal de tentar entender o que acontecia com ele, a educadora repetia para que ninguém tocasse no menino. O tom de deboche é evidente, deixando clara a intenção de dizer que a proibição de palmadas gera consequências como essa. Além disso, o menino é constantemente desafiado, o que intensifica os golpes que ele desfere contra os materiais da sala dos professores. Para terminar, a mulher que espantosamente é educadora pede para que chamem a polícia ou os bombeiros.

A reação explicitada na maioria dos comentários demonstra aquele velho pensamento adultista que sempre permeia este assunto. A violência contra a criança parece ser a única solução para silenciar os desconfortos demonstrados por ela. Portanto, o menino além de ter sido exposto por alguém que supostamente deveria zelar por ele, ainda se vê em meio a uma legião de pessoas que não demonstram pudor algum em incitar a violência contra ele. 

Mas por que agimos tão irracionalmente diante de uma "birra"? Uso a expressão assim entre aspas porque esta palavra é usada para se referir a uma demonstração de incômodo que acreditamos não ter razão de ser¹. E a expressão é usada principalmente para denominar ataques de raiva, fúria ou tristeza das crianças. Como se apenas pela fato de ela ser criança, seu incômodo fosse considerado menor ou desproporcional.

Pois bem, eu vejo essas "birras" como um marco super importante no desenvolvimento infantil. É na birra que a criança aprende a se colocar no mundo, se afirmar e se fazer ouvir. É neste momento que a gente percebe que a criança se reconhece como sujeito autônomo, separado de sua mãe.

Claro que estar presente naquele momento em que a criança se frustra, na figura de responsável por ela, é super difícil. Afinal, saber lidar com a frustração alheia é algo para poucos. Ainda mais quando a criança não tem desenvolvimento suficiente para conseguir nem entender o que está acontecendo, quanto mais saber controlar aquele sentimento. Porque além da imaturidade, a região do cérebro que coordena as emoções ainda está em desenvolvimento, Portanto, é algo realmente angustiante se frustar com algo e não saber racionalizar. Controlar a raiva é algo que aprendemos com o tempo e o que torna esse processo mais fácil é poder contar com a compreensão daqueles deveriam cuidar de nós.

Porque em momentos de angústia, às vezes, a única coisa que precisamos é de um abraço ou de um olhar compreensivo. Então, por que é tão difícil agir assim com uma criança? Por que a pulsão supostamente educadora parece falar mais alto do que o impulso de acolher? O que uma agressão poderia ajudar em uma caso desse?

Pelo vídeo não conseguimos saber nada daquele garoto. Não sabemos o motivo que o deixou tão furioso, tampouco se ele costuma agir dessa maneira e muito menos se aquela raiva tem origem em problemas familiares. Ora, toda criança age daquela forma. Algumas mais frequentemente, outras menos. Então por que reagir como se aquele menino fosse tão anormal?

O que quero dizer é que não acho que ele esteja necessariamente em sofrimento, ou que seja carente de amor ou, muito menos que tenha problemas psicológicos. E fico realmente assustada com a reação das pessoas que dizem querer defender o garoto usando algumas dessas hipóteses. Se fosse uma criança branca em uma escola particular, a reação seria a mesma?

Ao que me parece a vinculação direta entre desestrutura familiar e o ataque de fúria está diretamente ligada ao fato daquela criança ser negra e pobre. Como se a negritude pressuposse famílias incapazes de amar e proteger. Como se a pobreza implicasse em negligência.

Uma "birra" infantil não significa por si só que a criança viva em um ambiente hostil. Pelo contrário, poder se afirmar e se colocar é um ótimo sinal! Triste é saber que as pessoas não sabem lidar com a frustração alheia, ainda mais vindo de uma criança que não consegue racionalizar seus sentimentos.

A reação advinda deste momento tão peculiar da infância só revela adultismo, racismo e classismo. Por todos os lados. Seja daqueles que defendem o uso da violência contra a criança com daqueles que explicam a atitude do menino como falta de amor.

Tenho uma amiga que sempre repete: "A criança é um artefato biopolítico que garante a normalização do adulto²". Repreender a criança, encaixotá-la, nada mais é do que querer normalizar a nós mesmos. Por isso esta ânsia em obter "normalidade" da criança. Para que não chore. Não grite. Não se zangue. Triste daquele que não pode se expressar por medo de repreensão, e muito mais triste é aquele que não o faz por incapacidade de se reconhecer como sujeito portador de vontades.




1. Significado de birra: a.ato ou disposição de insistir obstinadamente em um comportamento ou de não mudar de ideia ou opinião; teima, teimosia. bsentimento ou demonstração de aversão ou antipatia, esp. quando renitente e motivado por algum capricho, paixão ou suscetibilidade; implicância, má vontade.

2. Esta frase é de Paul Preciado e pode ser lida neste incrível texto.



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