sábado, 21 de março de 2015

Empoderar-se para parir?

O sistema obstétrico brasileiro está fadado a reproduzir cada vez mais violências obstétricas. Sendo o parto um evento fisiológico e não patológico, não condizem com sua assistência procedimentos que priorizem a celeridade, a medicalização e a instrumentalização. Enquanto continuarmos a manter esse mesmo sistema, práticas violentas continuarão a se repetir. Este é um assunto bastante espinhoso e há um certo tempo eu venho refletindo sobre ele.

Em vista deste quadro, surge no Brasil um grande movimento que luta pela humanização do nascimento. Humanizar o parto, em poucas palavras, é respeitar o protagonismo da mulher, dando a ela o seu tempo para parir e evitando ao máximo a realização de intervenções.

E neste momento que o movimento vem encontrando cada vez mais forças é que se faz muito necessário falar sobre violência obstétrica e denunciar os fatores que levem a ela. Contudo, quando este tema vem à tona, é muito comum ouvir sobre o empoderamento da mulher como se a falta dele fosse também um dos fatores que a levassem juntamente com seu bebê a serem violentados. E, sobre esse posicionamento, eu discordo veementemente.

Colocar a falta de empoderamento como um fator que leva à violência é, no mínimo, uma argumentação deslocada. O empoderamento pode até ser colocado como uma tática de defesa, mas nunca como uma causa sob pena de culpabilização da vítima.

Primeiramente, neste contexto, a palavra empoderamento geralmente é lida em um sentido coletivo e não de empoderamento individual. Ao analisar a origem do termo, percebe-se que é um contrassenso. Empoderamento vem do termo em inglês “empowerment” e é um termo capitalista adotado pela administração de empresas para ensinar os funcionários a delegar tarefas. É um termo que foca no individualismo e tem bases na meritocracia. Trabalha a noção de que o indivíduo por si só é capaz de promover as mudanças necessárias a ele, que cada um se basta por si, e aí cai na meritocracia que move toda a máquina do capitalismo. Foca-se no indivíduo e despreza-se a rede de pessoas, o coletivo.

E eu entendo que no contexto da humanização, a palavra empoderamento possa ter tomado outro significado. No entanto, acredito que as palavras têm força. E insistir no uso do empoderamento, como se para se fortalecer seja necessário estar tomado de poder, para mim é continuar no embate. Porque o significado de poder exige dominação e submissão, ou seja, você luta pelo respeito pelo nascimento mas reforça a lógica de dominação já enraizada no status quo. Porque violência obstétrica é dominação e submissão. É tirar o protagonismo da mulher sobre o parto e sobre seu próprio corpo.

Reger suas próprias escolhas, se afirmar, se reconhecer é muito importante. Mas não acho que tenha a ver com poder. E acho estranho ressignificar um termo dentro de um grupo apenas.

Todavia, é certo que essa busca de conhecimento e de auto-estima da mulher, influencia no coletivo. Essa cultura de "luta" pelo parto desejado, fomentada por relatos de parto e pelas redes sociais, acaba de certa forma promovendo uma mudança cultural, em que o parto passa a ser novamente desejado e em que as mulheres vão se tornando mais ativas e exigentes, se colocam mais no processo de pré-natal e parto. Isso não é garantia de nada, mas gera um desconforto nos serviços. E no momento que as mulheres se organizam e, mesmo a partir de casos individuais, passam a coletivamente dar visibilidade às falhas da assistência que sofreram, cresce a intensidade da discussão sobre o tema. Acho que estamos passando por esse processo.

Isto foi só pra explicar minha birra com o termo e minha dificuldade de entendê-lo como algo coletivo. Mas entendo o uso da expressão.

Pausa para reflexão porque aqui se faz muito necessário um adendo sobre a utilização desta expressão, o tal do empoderamento.

O texto acima foi escrito antes de me deparar com este outro texto. Ele defende uma linha parecida com o que expus aqui, embora ache muita coisa problemática, tem muita cagação de regra aí. Mas então, em resposta a ele, me apresentaram um contraponto. Sou uma mulher branca, e este meu privilégio me cega de certa forma. No entanto, por sorte, encontrei algumas feministas negras porretas no meu caminho, que me fizeram apontamentos muito necessários. Até que ponto empoderar-se, ou seja, encher-se de poder não é vital para minorias? E, dentro do contexto do feminismo, considerando as opressões oriundas de um sistema patriarcal, empoderar-se pode sim ser muito importante. Mas, ressalto, isto porque se trata de um sistema de embate, de opressão. Porem, focando no nascimento, deveria a mulher se armar para parir?

É muito comum dentro do movimento da humanização ouvir que TEM que se estar empoderada para parir, como se o empoderamento fosse condição sine qua non. Já ouvi grandes vozes da humanização dizendo que não sofreram violência obstétrica porque estavam empoderadas. Isso, para mim, soa como se quem sofreu é porque não se empoderou. É culpabilizador! Acaba transferindo para a mulher a culpa pela violência, da mesma forma que o machismo sempre faz. E isso num momento de extrema fragilidade que é o trabalho de parto e o nascimento em si.

Talvez seja verdade que estar empoderada pode evitar a violência (repito, pode evitar, mas NUNCA causar), mas peitar o sistema é muito mais uma contrarreação do que uma causa. E, por isso, vejo o empoderamento como uma tática de contra-ataque. Ora, nos países onde o respeito na hora do parto é regra, o empoderamento não é tão necessário. Inglesas e holandesas, por exemplo, não precisam da mesma postura que uma brasileira para que seja respeitada em seu parto. Então, isso é consequência, e não causa. O sistema obstétrico atual deixa a mulher em situação passiva. Todo o protagonismo do parto lhe é retirado, e isso não é causa e sim, efeito. Empoderar-se é uma forma de reagir a isso, e não uma causa do sistema violento.

O enfrentamento é uma das nossas poucas armas de defesa. Mas, veja, estamos falando de nascimento e não de guerra e é terrível pensar que temos que nos armar. E alguém já ouviu falar de empoderar homem? Não precisa né? Eles têm todas as instituições ao seu lado, não precisam de empoderamento, por isso acho que esse é um fator secundário, que é mais uma defesa consequente da existência dos outros fatores.

Esses caminhos de resistência e criação de linhas de fuga ao sistema obstétrico, o que se costuma chamar de "empoderamento", são estratégias que as mulheres constroem frente a um terreno inóspito de assistência. No entanto, a assistência digna é um direito, e a não oferta desse direito jamais poderá ser atribuída à passividade, não empoderamento, ou o quer que seja por parte das mulheres.

E o conhecimento, educação em saúde, deveria estar disponível a todas, é um direito das usuárias do sus ou do sistema suplementar. Estamos falhando nisso, é uma questão de saúde pública também. Então são estratégias que buscamos para conseguir parir, suprindo as falhas do nosso sistema de atenção, mas a ausência destas estratégias não é justificativa para atenção ruim ao parto - e com frequência as coisas são colocadas nesses termos.

Ainda, o fato de confiarmos decisões sobre nossa saúde a quem usa jaleco branco, por exemplo, não é consequência de "baixo empoderamento" feminino, mas um sintoma social. A medicina historicamente detém o poder sobre a vida, não é na conta das mulheres e sua suposta baixa autoestima que isso deve ser depositado, a meu ver. Tornar-se empoderada significa reagir a toda e qualquer forma de violência, não reagir significa "falta de empoderamento"?

Eu vejo que o ideal seria que VO fosse uma exceção. E que nós não tivéssemos que praticamente nos formar obstetriz para parir. Empoderar- se é uma das poucas armas que temos para conseguir respeito. Mas, respeito deveria ser algo que nos fosse garantido sem luta. Portanto, deixar de se empoderar, por qualquer motivo, não poderia ser justificativa para que fossemos violentadas.

Se uma mulher deixa de sair à noite, ou passa somente a usar roupas que não chamem a atenção, ela diminuirá o risco de ser estuprada. Mas, se ela abrir mão dessa tática e for estuprada, o fator que contribuiu para que o crime acontecesse não pode ser atribuído a ela, e sim ao ato do estuprador, não é mesmo?

Então, falemos sobre "empoderar" mulheres, mas falemos como uma forma de se prevenir, e não como fator de ocorrência da violência.

Inclusive, eu fui encaminhada para a cesárea muito rápido. Foi tudo uma correria porque foi uma cesárea de emergência. E, depois que meu filho nasceu, a pediatra o trouxe para que eu pudesse vê-lo e ao querer tocá-lo, eu percebi que estava com os braços amarrados. Pedi para que me soltassem, mas disseram que não podiam. Como reagir? Eu me senti muito mal, mas só vim a saber que aquele procedimento não era padrão dias após a cirurgia.

E o que dizer das mulheres que pedem para não serem cortadas e, ainda assim, sofrem episiotomia? Não seria dever do médico se basear em evidências científicas e saber que aquele procedimento mutilador não deve ser de rotina? E, quiçá, não deveria ser feito nunca? Vide a experiência da Dr. Melania Amorim, que há anos não realiza mais episiotomias.


Imagem do Projeto Fotográfico 1 em 4 de Carla Raiter

É difícil reagir perante um sistema médico, cheio de procedimentos, se não se tem ferramentas para saber se aquilo é padrão ou se não é necessário.

Todo mundo sabe que o sistema obstétrico é muito cruel pra exigir que a mulher defenda seu parto ali naquele momento de tanta sensibilidade e fragilidade. A mulher que está empoderada e aos berros exige que não façam episiotomia e mesmo assim o médico faz, faltou lhe auto-estima?

E não poderia esquecer também dos casos da Adelir e da parturiente de Natal, que ficou tristemente conhecida como a “comedora de placenta”. Aquelas mulheres, ainda que muitíssimo empoderadas sofreram violências obstétricas inimagináveis e terríveis.

E, portanto, é necessário, para além do empoderamento, falar do lugar social da mulher. Se não, acabamos caindo no mesmo discurso falacioso da meritocracia. Existem hierarquias reprodutivas de acordo com a classe, idade, parceria sexual e a raça. Por isso a VO acontece muito mais nas mulheres negras e pobres, muito mais em mulheres que não vivem uma relação heteronormativa e monogâmica, mulheres que têm dst, usuárias de drogas, moradoras de rua, etc. Essas são as mulheres da "maternidade subalterna". E o empoderamento, para muitas mulheres, pode não fazer diferença alguma. 

Que sigamos lutando por uma assistência ao parto digna e respeitosa. Que haja verdadeiro respeito pela escolha das mulheres. Que elas possam livremente decidir por parir ou pela cirurgia. No hospital, na casa de parto ou em casa. Que seu protagonismo seja visto como um direito fundamental. Que não mais a responsabilizemos por serem violentadas.

Todas essas considerações não foram feitas por mim apenas. Elas foram discutidas com mulheres muito queridas e que muito contribuíram para que essas reflexões fossem feitas.

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