sexta-feira, 7 de outubro de 2016

O paternalismo que está por trás da Criança Feliz

Século XVIII. França. O cuidado com as crianças não é visto como algo importante. A imensa maioria dos bebês nascidos em Paris é entregue logo após o nascimento para amas[1], retornando à casa de seus pais apenas após a primeira infância. Cerca de 50% dessas crianças não atinge os 10 anos de idade. Os tempos são difíceis e a França precisa de homens para compor o exército, contudo, os jovens sobreviventes do descaso com a infância são em sua maioria pessoas doentes e fracas. Não por acaso, na mesma época surge um movimento de mulheres oriundas da aristocracia e da alta burguesia, denominadas “preciosas”, que começam a refletir sobre questões acerca da igualdade de gênero, fim de casamentos impostos, prazer sexual e, a partir disso, iniciam os questionamentos sobre o papel da mulher dentro da sociedade.

Neste cenário, estes dois fatos são encarados como as ameaças à França patriarcal: não há homens para compor a frente de batalha e as mulheres começam a dar sinais de emancipação.

É então que em 1762, Jean-Jacques Rousseau publica a obra Émile. O discurso trazido neste livro foi uma grande ferramenta para cristalizar ideias de que a família deveria ser fundada com base no amor materno. É um discurso altamente intelectualizado que naturaliza a função doméstica da mulher. Agora, as crianças são novamente cuidadas dentro de casa pelas suas mães. Numa solução que ao mesmo tempo que reduziu a mortalidade infantil também trouxe de volta as mulheres ao espaço privado.

2016. Brasil. O governo lança um programa ironicamente intitulado “Criança Feliz”. Também fundado na suposta preocupação com as crianças, o programa tem por objetivo promover o desenvolvimento infantil. O público alvo será as famílias beneficiárias do Bolsa Família (para gestantes e crianças até 3 anos) e do programa Prestação Continuada (para crianças até 6 anos que foram afastadas de suas famílias por medidas de proteção), portanto de baixa renda, que receberão visitas semanais de técnicos enviados pelo governo e os resultados destas visitas serão condicionantes ao recebimento dos aludidos benefícios. No discurso de lançamento do programa, ouvimos a primeira-dama enaltecer qualidades inatas que mulheres teriam ao exercer o papel de mãe. Além disso, ela se comprometeu a conversar com outras primeiras-damas e prefeitas sobre o programa, em uma explícita exclusão a participação de homens no que tange o cuidado com as crianças. Uma boa análise do discurso do lançamento deste programa pode ser lida aqui.

Foto de André Coelho

Três séculos depois. Países diferentes. Mas o mito do instinto materno é novamente usado para reforçar a ideia de que mulheres são maternais, que o seu lugar biológico é no cuidado. Mulher como primeira-dama e não como governante. Homens no espaço público e não se preocupando com os cuidados na infância. Não é pelas crianças. Nunca foi pelas crianças. Trata-se sempre de controle social. De medidas que docilizam, submetem e conformizam individualidades. Parece exagero? Então analisemos o programa Criança Feliz.

A motivação do programa foi resumida da seguinte forma:
"Estudos longitudinais de acompanhamento da população ano após ano mostram que as habilidades mais importantes se organizam muito cedo, depois elas têm mais dificuldade de se organizar, de se estabelecer. Então, o impacto que tem uma infância bem cuidada é enorme no desenvolvimento, na aprendizagem, na escola, no sucesso profissional, nas competências que o ser humano vai ter no restante da vida. Por isso que é importante a gente acoplar esse programa com o programa que trata com a população mais vulnerável, o Bolsa Família para poder impactar a longo prazo e essas famílias saírem da condição de pobreza, a longo prazo, quando seus filhos tenham um desempenho profissional melhor que o deles e ajuda toda a família a sair [da vulnerabilidade]."

Portanto, o programa foca em “habilidades importantes” que em um primeiro momento não traz um sentido muito preciso, mas que após se traduz também em “sucesso profissional”, lembrando que o público alvo do programa é a “população mais vulnerável”. Que tipo de programa é esse que tem dentro de suas principais medidas o acompanhamento SEMANAL e DOMICILIAR da população de baixa renda com fim de promover sucesso profissional nas crianças??? Ainda, importante destacar que a apresentação do projeto foi voltado às mulheres, sempre apelando para o mito do instinto materno, e inclusive convocando apenas mulheres da administração para compor o comitê que traçará os rumos do programa.

Este programa evidencia que o governo entende que a responsabilidade pelas crianças é exclusivamente das mães e que estas, por serem pobres, se mostram incapazes de cuidar de seus filhos. Escancaradamente, trata-se de um programa paternalista que sem ao menos ouvir essas mulheres, dita mecanismos que irão influenciar diretamente nas suas vidas. Não há outra explicação. Se houvesse, estaríamos falando em programas que incentivassem a participação dos homens na criação dos filhos através da criação da licença parental ou mesmo da ampliação da licença paternidade. Ou então em programas que investissem na criação de creches com educadores bem remunerados e com estrutura para atender bem as crianças. Ou mesmo algum investimento em transporte público de modo que os pais não perdessem tanto tempo no trajeto casa-trabalho. Poderia ser também um programa que garantisse saneamento básico e uma estrutura de moradia que garantisse a saúde dessas crianças. Ainda, se o problema fosse dificuldade no acesso à informação e apoio, que se investisse na contratação de médicos da família, de psicólogos e de assistentes sociais que estivessem à disposição quando procurados e não que estas visitas fossem feitas de maneira invasiva e obrigatória como se está sendo proposto.

Mas quando o governo entra SEMANALMENTE na CASA da população pobre com fim de orientar a MULHER sobre a criação dos filhos, a mensagem que temos é que a única responsável pela criação dos filhos é a mãe. Que os pais não são foco do programa, tampouco a estrutura da cidade importa para que as crianças cresçam em segurança, tanto afetiva como material. Ou seja, o programa isenta o GOVERNO e os HOMENS dos cuidados com os filhos e implanta um projeto PATERNALISTA[2] que culpabiliza mulheres pobres e mães. Culpabiliza porque o programa é focado em um atendimento pedagógico à mulher mãe fazendo crer que qualquer “desvio” na conduta dos seus filhos advém de algum desvio na sua própria conduta. Como se a falta de estrutura, a qual deveria ser prestada pelo Estado, não fosse o principal causador de lesões aos direitos das crianças.

Criança Feliz nada mais é do que um programa de controle social, que tem por fim garantir a conformidade do comportamento dos indivíduos, com traços tão poucos sofisticados que fariam Michel Foucault ruborizar.

E é também um programa que fere a autonomia da mulher periférica, em sua maioria mulheres negras. Além de não terem direito sobre o próprio corpo - já que o aborto é ilegal e inseguro para as mulheres pobres-, além de serem torturadas no momento de parir - em vista das práticas normatizadas de violência obstétrica seguidas pela maioria dos hospitais públicos-, agora essas mulheres receberão visitais semanais de agentes do governo que lhe dirão como devem criar seus filhos!

E concordo com o discurso de Marcela Temer quando diz que a infância é uma fase fundamental da vida de qualquer ser humano. Concordo também que deva ser um programa voltado ao atendimento das mulheres, já que elas são maioria das beneficiárias do Bolsa Família e frente ao tão frequente abandono paterno. Contudo, há maneiras de atender a primeira infância sem imputar às mulheres a função exclusiva no cuidado e sem ferir a sua autonomia. É possível também olhar para a criança desde o nascimento enquanto ser humano portador de direitos e não apenas como um devir, um projeto de investimento.

É preciso apoio e estrutura para conseguir criar os filhos. Não será através da tutela das mulheres periféricas que as crianças terão uma infância com mais amparo. O posto de belas, recatadas e do lar foi muito bem aceito a três séculos, masnão hoje. Não. Hoje não passarão!




[1] 1780: o tenente de polícia Lenoir constata, não sem amargura, que das 21 mil crianças que nascem anualmente em Paris, apenas mil são amamentadas pela mãe. Outras mil, privilegiadas, são amamentadas por amas-de-leite residentes. Todas as outras deixam o seio materno para serem criadas no domicílio mais ou menos distante de uma ama mercenária. (BADINTER,1981).
[2] Paternalismo, em sentido lato, é um sistema de relações sociais e trabalhistas, unidos por um conjunto de valores, doutrinas políticas e normas fundadas na valorização positiva da pessoa do patriarca.
Em sentido estrito, o paternalismo é uma modalidade de autoritarismo, na qual uma pessoa exerce o poder sobre outra combinando decisões arbitrárias e inquestionáveis, com elementos sentimentais e concessões graciosas.
Para o Direito Constitucional, o Estado paternalista é aquele que limita as liberdades individuais dos seus cidadãos com base em valores axiológicos que fundamentam as imposições estatais. Desta maneira, se justifica a invasão da parcela correspondente à autonomia individual por parte da norma jurídica, baseando-se na incapacidade ou idoneidade dos cidadãos para tomar determinadas decisões que o Estado julga corretas. (Fonte: Wikipedia)
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