Relatar o parto, além
de ressignificar os acontecimentos vividos, é também uma forma de tornar
acessíveis as reais circunstâncias do nascimento, desmistificando-o e
apresentando um ponto de vista de experiência.
Eu só consegui relatar o
meu parto dois anos após o seu acontecimento. E poder por em palavras as angústias
vividas foi libertador. E, somente agora, quase dois anos e meio depois, é que
consigo fazer o relato em forma de texto. Portanto, já adianto que este não é
um daqueles relatos que o final é lindo e acontece como o esperado.
·
O
pré-natal
Assim que me descobri
grávida, eu já tinha certeza sobre qual a via de nascimento que desejava. Para
mim, ser a protagonista deste momento era muito importante. Mesmo vindo de uma
família que a última geração de mulheres não pariu e tendo um círculo de amigas
com poucas mães (em que quase todas optaram pela cesárea), ainda assim, resolvi
buscar informação em busca de um parto normal.
E era só isso. Um parto
normal. Acreditava que parir por si só já era um ato revolucionário. Comecei a
ir a um GO indicado por uma amiga. Logo na primeira consulta ele me garantiu
que poderíamos tentar um parto normal, apesar
da minha idade. Ele afirmou que como eu tinha 27 anos, poderia ser que não
tivesse dilatação. Hoje, vejo que essa afirmação é tão absurda que eu deveria
ter saído correndo de lá na mesma hora. Mas naquela época, eu só fiquei
desconfiada. Então, por conta disso, resolvi iniciar o pré-natal também pelo
SUS, embora ficasse arrepiada de pensar nos inúmeros relatos de violência
obstétrica que se passam na rede pública. Segui assim, com dois acompanhamentos
de pré-natal por um bom tempo.
Conforme o tempo ia
passando, comecei a perceber que todas as pacientes daquele GO haviam passado
por uma cesárea. A secretária chegou a me dizer que acreditava que a taxa de
cesárea dele girava em torno de 95%. Mas quando eu perguntava àquelas mulheres
o motivo da cirurgia, a resposta nunca era uma escolha delas. Sempre havia
alguma indicação médica. Parecia até que todas as indicações reais de cesárea
(que pela OMS não ultrapassa os 15%) eram ironicamente pacientes daquele
médico. Além disso, quando perguntava a ele sobre os partos normais que ele
havia assistido, todos pareciam ser realizados às pressas. Ou seja, pareciam
ser aqueles bebês que não esperam por uma cesárea, o chamado “parto quiabo”:
nasce escorregando.
Foi mais ou menos nesta
época, com uns 4/5 meses de gestação, que eu resolvi parar de ir às consultas
do SUS. Ficava muito insegura de estar à mercê da equipe plantonista. Mas
também não estava confiante em relação àquele GO do plano. Procurei, então, um
GO que me atendia antes da gravidez. Mas para o meu desespero, apenas na
consulta ele me informou que tinha optado em atender somente ginecologia e não
assistia mais partos. Sai de lá com três números de colegas indicados por ele.
Dois deles tinham consulta disponível apenas para dali a 3/4 meses, o que
ficava inviável para mim. Fui então à colega que restou.
A médica atendia pelo
plano, mas a primeira consulta era particular. Mesmo assim, resolvi tentar.
Gostei muito porque senti que com ela era possível ter um parto normal. E era
isso que me importava na época, não tinha noção que mais importante do que
encontrar um profissional que não te induza à cesárea, é buscar por aqueles que
respeitem os desejos e o tempo da paciente. Ou seja, que respeite o
protagonismo da mulher e não utilize de intervenções desnecessárias que só
fazem acelerar o trabalho de parto deixando todo o processo mais dolorido e
estressante. E, portanto, eu não percebi quão ofensivo foi quando ela me disse
que buscava sempre por um parto normal, contudo, aliado à ciência e “não essas
coisas de parteira, e parir na água...porque isso é um retrocesso em vista do
avanço científico”. (Infelizmente, este também era meu pensamento naquela
época. Parir em casa só podia ser coisa de gente maluca.) Eu estava diante de
uma profissional que medicaliza o nascimento. Por sorte, me livrei dela quando
ao sair do consultório, fui informada pela secretária que o pré-natal era coberto
pelo convênio, mas o parto era particular, e o preço bem salgado.
No entanto, ainda que já
estivesse procurando outro GO, continuava a ir às consultas do GO “fofo”. Como se não bastasse todas as evidências de
que ele era um médico cesarista, eu ainda não estava convencida. Mas, neste
momento, eu começava a entender o que eram as intervenções desnecessárias e
perguntei a ele sobre a episiotomia. E foi aquela resposta que me fez decidir a
nunca mais voltar lá. Ele me garantiu que episiotomia era um procedimento necessário e de rotina.
Já no meio da gravidez,
conheci o obstetra que me acompanhou no dia do nascimento. Sentia confiança
nele e sabia que com ele o meu desejo por um parto normal seria respeitado.
Foi então que um
acontecimento burocrático minou as minhas chances de conseguir um parto normal.
Minha DPP era para o dia
21/01. Eu acreditava que o nascimento ocorreria antes disso. Era o que todos me
falavam. Hoje eu vejo o porquê. Todos que eu conhecia tinham experiência de
cesárea eletiva ou de partos rápidos. Por conta desse elevado número de
cirurgias, atualmente, é muito difícil ver alguma gravidez que passe de 40
semanas, embora hoje eu saiba que para primíparas é muito normal que o trabalho
de parto só inicie após este prazo.
No começo de janeiro meu
marido recebeu uma proposta irrecusável de emprego. Essa mudança acarretaria
também na mudança de plano de saúde, o qual eu era sua dependente. Liguei para
o plano antigo e fui informada que ele seria válido apenas até o dia 31/01.
Segundo informações que obtive na época, essa era a data limite para a alta no
hospital. Portanto, como a internação é de no mínimo dois dias, o Daniel teria
que nascer até o dia 29/01. Nesta data, eu estaria com 41 semanas e 1 dia. Como
disse, acreditava que esse prazo era suficiente para eu entrar em trabalho de
parto. Ainda assim, para me garantir, entrei em contato com o novo plano.
Porem, como a contratação ainda não tinha sido formalizada, eu não possuía o
número da carteirinha do plano e, assim, não souberam me informar se haveria
exigibilidade de carência para cobertura de parto ou não. (Hoje eu sei que
planos empresariais realizados por empresas com mais de 30 funcionários não
podem exigir carência, ou seja, eu poderia ter esperado mais tempo que estaria
segurada pelo novo plano, mas esta informação me faltou).
Devido a esta nova
circunstância, eu tinha um novo prazo para entrar em TP: 29/01. O tempo foi
passando e não tinha nenhum sinal que entraria em TP. Barriga continuava super
alta. Tomei vários chás, andava muito todos os dias e nada. Na segunda feira,
dia 28/01, fui aos prantos ao que sabia ser a ultima consulta do pré-natal. Sai
de lá com o pedido de internação para tentar uma indução.
·
O
nascimento
Dei entrada no hospital no
final da noite. Sempre respondendo para a atendente que “Não moça. Eu não sei o
horário da cirurgia. Eu vou fazer uma indução”.
Por volta de 1h, o médico
plantonista chegou para iniciar a indução por misoprostol. Pouco menos de uma
hora depois, eu já começava a sentir as contrações. Mesmo muito ansiosa,
consegui cochilar depois disso. Acordei novamente, às 5h e as contrações já
estavam começando a ficar rítmicas, com intervalo de 8/8min. Continuei deitada
até que a dor ficou mais intensa. Meu marido acordou também e fomos andar pela
maternidade. Eu ainda não gritava, mas apenas pelo meu semblante de dor,
percebia que chamava a atenção das enfermeiras que me olhavam como se nunca
houvessem antes visto uma mulher em trabalho de parto.
Já às 7h,
trouxeram o café da manhã, mas eu não consegui comer nada devido a dores.
Poucos minutos depois, o meu GO chegou ao quarto. Auscultou o coração do bebê e
percebeu uma disritmia. Pediu para que me preparassem para ser levada ao centro
obstétrico. Coloquei a camisola e fui levada de cadeira de rodas, embora
tivesse plenas condições de ir andando.
No CO, as
contrações já não tinham mais intervalo. Vinham uma após a outra e pude
perceber que algo não estava correndo bem. O médico chamou a enfermeira e pediu
para que ela trouxesse um medicamento que cortaria o efeito da indução. Ela, na
minha frente, respondeu que aquele remédio não era para este fim. Ele insistiu
dizendo que sabia o que estava fazendo. Ao que ela respondeu que eles não
tinham aquele medicamento no hospital e ela deveria busca-lo em uma farmácia.
Após ela sair, ele comentou comigo que as enfermeiras de hospital privado não
estão acostumadas com induções de parto e desconhecem o procedimento.
Cerca de 30 minutos
depois, ela voltou com a medicação e após algum tempo comecei a sentir
novamente intervalo entre as contrações. O GO me adiantou que como eu estava
sem dilatação, o TP ainda poderia durar cerca de 8 horas. Em vista disso, ele
disse que teria que visitar outras pacientes e que voltaria em cerca de 1 hora.
Neste momento, as dores
das contrações já eram suportáveis. Chamei a enfermeira e pedi para voltar ao
quarto. Ora, eu estava numa sala de no máximo 4m² e sozinha! Com a negativa,
pedi para que chamassem meu marido. Apesar de lei federal que garante a
presença de acompanhante, esse pedido também me foi negado. Então, pedi para
comer e tomar água. E, novamente, não fui atendida.
Não é de se espantar que
diante deste quadro, sozinha, em TP, sem comer, tomar água ou poder me
movimentar, comecei a ficar muito nervosa e ansiosa.
Foi quando, logo depois,
meu marido conseguiu entrar no CO após muito brigar com a enfermeira. Neste
momento, as contrações já estavam ficando mais fortes e com as dores ouvi um
PLOC. Já sabia o que aquilo significava. Sabia que minha bolsa tinha rompido e
fui ao banheiro.
O único banheiro do CO era
sujo e escuro. Mas, ainda assim, percebi a cor esverdeada do líquido amniótico.
Chamei a enfermeira e informei a ela que minha bolsa havia rompido com a
presença de mecônio. Ela pediu para que me deitasse e me disse que eu estava
enganada: “você está sequinha”.
No mesmo momento, o GO
retornou e eu o avisei que não obstante a opinião da enfermeira, eu sabia que a
bolsa tinha estourado com mecônio. Neste momento, as dores já estavam
insuportáveis. Ele pediu para que eu me deitasse e fez um exame de toque super
dolorido. Ele confirmou a presença de mecônio e constatou que eu ainda não
tinha qualquer dilatação. Informou a mim e meu marido que aquele prazo de 8
horas ainda se mantinha e perguntou qual seria nossa decisão.
Neste momento eu já tinha
consciência que a indução de parto não foi bem sucedida. Foi ela que levou ao
início de sofrimento fetal, apontado pela alteração nos batimentos cardíacos, e
que tinha levado à presença de mecônio na bolsa. Fora isso, as dores estavam
insuportáveis e eu não tinha nem começado a dilatar. A decisão pela cesárea
quedou inevitável.
Com isso, o médico saiu
para se preparar para a cirurgia e eu comecei a perceber o desespero das
enfermeiras. Elas cochichavam, como se eu não estivesse presente. Eu urrava de
dor e uma delas me disse repetidas vezes: “Ué? Mas você não queria parto
normal?” Ninguém é capaz de imaginar o ódio que sinto dessa mulher até hoje.
Me levaram à sala de
cirurgia. A anestesista insistia para que eu me sentasse e ficasse com as
costas curvadas. Mas eu, novamente, não tinha mais intervalo entre as
contrações, e ficar sentada era uma tortura. Depois de algumas tentativas, ela
conseguiu aplicar a anestesia e eu fiquei chapadíssima. Apesar da tristeza por
saber que eu não teria um PN, fiquei feliz em não sentir mais aquela dor.
Alguns minutos depois, o
médico entra calmamente na sala de cirurgia. Algumas enfermeiras tentam o
apressar lembrando que havia mecônio na bolsa. Hoje eu percebo o completo
despreparo daquelas profissionais.
A cirurgia começou e eu
não estava participando de nada. A mim, só restou ficar olhando o relógio
pendurado na parede da sala. 11h45 foi quando percebi que o Daniel foi erguido
pelo médico. Ele não chorou. Foi aspirado assim que nasceu. Levaram-no e logo
trouxeram enrolado em panos do hospital para que eu pudesse vê-lo. Sim, apenas
ver. Neste momento eu me dei conta que estava amarrada, na mesma posição da
crucificação. Outro procedimento totalmente desnecessário. Por conta das
amarras, não pude tocar meu filho. Fiquei tão atônita que também não consegui
falar com ele. Pela foto, é possível perceber tamanha insensibilidade da
enfermeira. No momento em que eu via meu filho pela primeira vez, e percebia
que estava amarrada, a enfermeira aplicava alguma injeção em meu braço.
Ele foi novamente levado e
passou por todas aquelas intervenções hospitalares de praxe. Meu marido filmou
tudo. Hoje, quando revejo as imagens, assemelho aquilo a uma sessão de tortura.
Aplicaram-no colírio de nitrato de prata, mesmo eu tendo feito pré-natal com o
mesmo médico que me operou e comprovado que eu não tinha nenhuma doença
venérea. Realizaram a medição de comprimento, mesmo ele ainda estando com as
pernas na mesma posição que ficara por nove meses. No vídeo, é possível
observar que ela puxa sua perna repetidas vezes, o que lhe causa um choro alto
e sentido.
Quando o médico terminou a
cirurgia, veio falar comigo, e eu lhe perguntei primeiramente se caso
engravidasse de novo, se poderia ter um parto normal. Ele respondeu
afirmativamente. Depois lhe perguntei se aquela dor insuportável era assim
mesmo, ele apenas confirmou. Hoje sei que a indução de parto, seja ela por
misoprostol ou ocitocina, provocam dores muito mais intensas do que aquelas
contrações causadas por hormônios naturais. Além disso, as dores costumam
aumentar depois que a bolsa estoura já em TP.
Após a cirurgia, eu fiquei
cerca de 2 horas numa sala escura junto de outras duas mulheres. Tentava mexer
os dedos do meu pé a todo custo para poder finalmente ir para o quarto. Quando
consegui, chamei a enfermeira que me disse que não podia me levar naquele
momento, pois era hora de almoço e estava sozinha no plantão. Esperei mais
alguns minutos e fiquei surpresa quando cheguei ao quarto e o Daniel não estava
lá. Meu marido foi quem me informou que ele estava numa incubadora recebendo
oxigênio. Ele nasceu com apgar 8/10. 8/10!!! Seria mesmo necessário deixá-lo
por mais de 4 horas em uma incubadora??? Eu só fui poder tocar no meu filho
depois de 4 horas após o nascimento. Esse período me pareceu uma eternidade.
Em sua carteira, que
recebemos após a alta, constou 3,520 kg, 50cm e 40 semanas. Apesar de eu estar
com 41 + 1 semanas de gestação, a idade dele foi de 40 semanas. É muito comum
essa disparidade, e pode chegar até duas (às vezes 3) semanas de diferença.
Segundo o GO, muito
provavelmente a minha hiperreação à indução se deu pelo fato de que eu entraria
em TP naturalmente naquela madrugada. Não ter podido esperar e ter passado por
toda essa situação de violência obstétrica afetou em muito a minha maternagem
nos primeiros meses de vida do meu filho.
Não é o fato de ter
passado por uma cesárea. E sim por ter durante toda a gestação buscado por
profissionais que me assegurassem um direito de escolha e ainda assim, ter sido
violentada. Fico muito grata pela amamentação ter se estabelecido de uma
maneira tão fácil e indolor que me garantiu um vínculo forte e segurança
durante o puerpério.
O dia do nascimento do meu
filho foi também um dia que me senti muito violentada e eu não desejo isso a
ninguém.
Para quem tem condições de
arcar com o custo, recomendo muito a contratação de uma doula. Esta
profissional tem contatos, conhece a realidade do sistema obstétrico, sabe
nomear e apontar violência obstétrica. Ainda que o parto aconteça no SUS, a sua
presença pode ser fundamental para se evitar procedimentos desnecessários.
Gostei muito dessas dicas,
mas é necessário que se aponte que esse “empoderamento” é algo inacessível amuitas mulheres. E quando estamos pensando no coletivo, é necessário
falar sobre as estruturas que mantem este sistema falido e não adestrar a
mulher para que consiga driblá-lo.
*Agradeço à Letícia pelo acolhimento quando os sentimentos já não suportavam a ausência de palavras.
** A indução com misoprostol pode acarretar em: "O misoprostol tem como efeito colateral excesso de contrações uterinas (taquissistolia), hipertonia uterina (contração que não passa), náuseas e diarreia. Este excesso de contrações uterinas pode levar a sofrimento fetal e por isso toda indução com misoprostol deve ser adequadamente monitorizada e deve ser realizada em ambiente hospitalar. A presença de cesárea prévia é uma contra-indicação relativa ao uso do misoprostol." Fonte aqui.
Oi querida. Acabei de ler o seu relato e me emocionou bastante.
ResponderExcluirNão sei onde você mora, mas gostaria de te dizer que existem doulas voluntárias, para mulheres que não tem como custear o trabalho de uma doula.
Se você vier a engravidar novamente, não se prive da companhia de uma doula pela falta de dinheiro. O nosso trabalho vai muito além do dinheiro; queremos que as mulheres tenham uma experiência de parto positiva. E isso é o mais importante.
Raissa Osorio - Doula em Brasilia
Olá Raissa!!
ExcluirEu sou de Curitiba e quando eu engravidei nunca havia ouvido falar em doulas. Durante a gestação, que fiquei sabendo do que se tratava mas também não fui atrás pq pensava ser desnecessário.
Hoje indico a todo mundo. Concordo com você que doulas são presenças essenciais durante o trabalho de parto. Acredito que no meu caso, a presença de uma doula, além da orientação, poderia ter influenciado em inibir as práticas violentas que ocorreram dentro do hospital.
Obrigada!
Lígia