terça-feira, 30 de junho de 2015

Relato de Parto (41 + 1): Entendendo violências

Relatar o parto, além de ressignificar os acontecimentos vividos, é também uma forma de tornar acessíveis as reais circunstâncias do nascimento, desmistificando-o e apresentando um ponto de vista de experiência.

Eu só consegui relatar o meu parto dois anos após o seu acontecimento. E poder por em palavras as angústias vividas foi libertador. E, somente agora, quase dois anos e meio depois, é que consigo fazer o relato em forma de texto. Portanto, já adianto que este não é um daqueles relatos que o final é lindo e acontece como o esperado.

·         O pré-natal
Assim que me descobri grávida, eu já tinha certeza sobre qual a via de nascimento que desejava. Para mim, ser a protagonista deste momento era muito importante. Mesmo vindo de uma família que a última geração de mulheres não pariu e tendo um círculo de amigas com poucas mães (em que quase todas optaram pela cesárea), ainda assim, resolvi buscar informação em busca de um parto normal.

E era só isso. Um parto normal. Acreditava que parir por si só já era um ato revolucionário. Comecei a ir a um GO indicado por uma amiga. Logo na primeira consulta ele me garantiu que poderíamos tentar um parto normal, apesar da minha idade. Ele afirmou que como eu tinha 27 anos, poderia ser que não tivesse dilatação. Hoje, vejo que essa afirmação é tão absurda que eu deveria ter saído correndo de lá na mesma hora. Mas naquela época, eu só fiquei desconfiada. Então, por conta disso, resolvi iniciar o pré-natal também pelo SUS, embora ficasse arrepiada de pensar nos inúmeros relatos de violência obstétrica que se passam na rede pública. Segui assim, com dois acompanhamentos de pré-natal por um bom tempo.

Conforme o tempo ia passando, comecei a perceber que todas as pacientes daquele GO haviam passado por uma cesárea. A secretária chegou a me dizer que acreditava que a taxa de cesárea dele girava em torno de 95%. Mas quando eu perguntava àquelas mulheres o motivo da cirurgia, a resposta nunca era uma escolha delas. Sempre havia alguma indicação médica. Parecia até que todas as indicações reais de cesárea (que pela OMS não ultrapassa os 15%) eram ironicamente pacientes daquele médico. Além disso, quando perguntava a ele sobre os partos normais que ele havia assistido, todos pareciam ser realizados às pressas. Ou seja, pareciam ser aqueles bebês que não esperam por uma cesárea, o chamado “parto quiabo”: nasce escorregando.

Foi mais ou menos nesta época, com uns 4/5 meses de gestação, que eu resolvi parar de ir às consultas do SUS. Ficava muito insegura de estar à mercê da equipe plantonista. Mas também não estava confiante em relação àquele GO do plano. Procurei, então, um GO que me atendia antes da gravidez. Mas para o meu desespero, apenas na consulta ele me informou que tinha optado em atender somente ginecologia e não assistia mais partos. Sai de lá com três números de colegas indicados por ele. Dois deles tinham consulta disponível apenas para dali a 3/4 meses, o que ficava inviável para mim. Fui então à colega que restou.

A médica atendia pelo plano, mas a primeira consulta era particular. Mesmo assim, resolvi tentar. Gostei muito porque senti que com ela era possível ter um parto normal. E era isso que me importava na época, não tinha noção que mais importante do que encontrar um profissional que não te induza à cesárea, é buscar por aqueles que respeitem os desejos e o tempo da paciente. Ou seja, que respeite o protagonismo da mulher e não utilize de intervenções desnecessárias que só fazem acelerar o trabalho de parto deixando todo o processo mais dolorido e estressante. E, portanto, eu não percebi quão ofensivo foi quando ela me disse que buscava sempre por um parto normal, contudo, aliado à ciência e “não essas coisas de parteira, e parir na água...porque isso é um retrocesso em vista do avanço científico”. (Infelizmente, este também era meu pensamento naquela época. Parir em casa só podia ser coisa de gente maluca.) Eu estava diante de uma profissional que medicaliza o nascimento. Por sorte, me livrei dela quando ao sair do consultório, fui informada pela secretária que o pré-natal era coberto pelo convênio, mas o parto era particular, e o preço bem salgado.

No entanto, ainda que já estivesse procurando outro GO, continuava a ir às consultas do GO “fofo”.  Como se não bastasse todas as evidências de que ele era um médico cesarista, eu ainda não estava convencida. Mas, neste momento, eu começava a entender o que eram as intervenções desnecessárias e perguntei a ele sobre a episiotomia. E foi aquela resposta que me fez decidir a nunca mais voltar lá. Ele me garantiu que episiotomia era um procedimento necessário e de rotina.

Já no meio da gravidez, conheci o obstetra que me acompanhou no dia do nascimento. Sentia confiança nele e sabia que com ele o meu desejo por um parto normal seria respeitado.
Foi então que um acontecimento burocrático minou as minhas chances de conseguir um parto normal.

Minha DPP era para o dia 21/01. Eu acreditava que o nascimento ocorreria antes disso. Era o que todos me falavam. Hoje eu vejo o porquê. Todos que eu conhecia tinham experiência de cesárea eletiva ou de partos rápidos. Por conta desse elevado número de cirurgias, atualmente, é muito difícil ver alguma gravidez que passe de 40 semanas, embora hoje eu saiba que para primíparas é muito normal que o trabalho de parto só inicie após este prazo.

No começo de janeiro meu marido recebeu uma proposta irrecusável de emprego. Essa mudança acarretaria também na mudança de plano de saúde, o qual eu era sua dependente. Liguei para o plano antigo e fui informada que ele seria válido apenas até o dia 31/01. Segundo informações que obtive na época, essa era a data limite para a alta no hospital. Portanto, como a internação é de no mínimo dois dias, o Daniel teria que nascer até o dia 29/01. Nesta data, eu estaria com 41 semanas e 1 dia. Como disse, acreditava que esse prazo era suficiente para eu entrar em trabalho de parto. Ainda assim, para me garantir, entrei em contato com o novo plano. Porem, como a contratação ainda não tinha sido formalizada, eu não possuía o número da carteirinha do plano e, assim, não souberam me informar se haveria exigibilidade de carência para cobertura de parto ou não. (Hoje eu sei que planos empresariais realizados por empresas com mais de 30 funcionários não podem exigir carência, ou seja, eu poderia ter esperado mais tempo que estaria segurada pelo novo plano, mas esta informação me faltou).

Devido a esta nova circunstância, eu tinha um novo prazo para entrar em TP: 29/01. O tempo foi passando e não tinha nenhum sinal que entraria em TP. Barriga continuava super alta. Tomei vários chás, andava muito todos os dias e nada. Na segunda feira, dia 28/01, fui aos prantos ao que sabia ser a ultima consulta do pré-natal. Sai de lá com o pedido de internação para tentar uma indução.

·         O nascimento
Dei entrada no hospital no final da noite. Sempre respondendo para a atendente que “Não moça. Eu não sei o horário da cirurgia. Eu vou fazer uma indução”.

Por volta de 1h, o médico plantonista chegou para iniciar a indução por misoprostol. Pouco menos de uma hora depois, eu já começava a sentir as contrações. Mesmo muito ansiosa, consegui cochilar depois disso. Acordei novamente, às 5h e as contrações já estavam começando a ficar rítmicas, com intervalo de 8/8min. Continuei deitada até que a dor ficou mais intensa. Meu marido acordou também e fomos andar pela maternidade. Eu ainda não gritava, mas apenas pelo meu semblante de dor, percebia que chamava a atenção das enfermeiras que me olhavam como se nunca houvessem antes visto uma mulher em trabalho de parto.

Já às 7h, trouxeram o café da manhã, mas eu não consegui comer nada devido a dores. Poucos minutos depois, o meu GO chegou ao quarto. Auscultou o coração do bebê e percebeu uma disritmia. Pediu para que me preparassem para ser levada ao centro obstétrico. Coloquei a camisola e fui levada de cadeira de rodas, embora tivesse plenas condições de ir andando.

No CO, as contrações já não tinham mais intervalo. Vinham uma após a outra e pude perceber que algo não estava correndo bem. O médico chamou a enfermeira e pediu para que ela trouxesse um medicamento que cortaria o efeito da indução. Ela, na minha frente, respondeu que aquele remédio não era para este fim. Ele insistiu dizendo que sabia o que estava fazendo. Ao que ela respondeu que eles não tinham aquele medicamento no hospital e ela deveria busca-lo em uma farmácia. Após ela sair, ele comentou comigo que as enfermeiras de hospital privado não estão acostumadas com induções de parto e desconhecem o procedimento.

Cerca de 30 minutos depois, ela voltou com a medicação e após algum tempo comecei a sentir novamente intervalo entre as contrações. O GO me adiantou que como eu estava sem dilatação, o TP ainda poderia durar cerca de 8 horas. Em vista disso, ele disse que teria que visitar outras pacientes e que voltaria em cerca de 1 hora.

Neste momento, as dores das contrações já eram suportáveis. Chamei a enfermeira e pedi para voltar ao quarto. Ora, eu estava numa sala de no máximo 4m² e sozinha! Com a negativa, pedi para que chamassem meu marido. Apesar de lei federal que garante a presença de acompanhante, esse pedido também me foi negado. Então, pedi para comer e tomar água. E, novamente, não fui atendida.

Não é de se espantar que diante deste quadro, sozinha, em TP, sem comer, tomar água ou poder me movimentar, comecei a ficar muito nervosa e ansiosa.
Foi quando, logo depois, meu marido conseguiu entrar no CO após muito brigar com a enfermeira. Neste momento, as contrações já estavam ficando mais fortes e com as dores ouvi um PLOC. Já sabia o que aquilo significava. Sabia que minha bolsa tinha rompido e fui ao banheiro.

O único banheiro do CO era sujo e escuro. Mas, ainda assim, percebi a cor esverdeada do líquido amniótico. Chamei a enfermeira e informei a ela que minha bolsa havia rompido com a presença de mecônio. Ela pediu para que me deitasse e me disse que eu estava enganada: “você está sequinha”.

No mesmo momento, o GO retornou e eu o avisei que não obstante a opinião da enfermeira, eu sabia que a bolsa tinha estourado com mecônio. Neste momento, as dores já estavam insuportáveis. Ele pediu para que eu me deitasse e fez um exame de toque super dolorido. Ele confirmou a presença de mecônio e constatou que eu ainda não tinha qualquer dilatação. Informou a mim e meu marido que aquele prazo de 8 horas ainda se mantinha e perguntou qual seria nossa decisão.

Neste momento eu já tinha consciência que a indução de parto não foi bem sucedida. Foi ela que levou ao início de sofrimento fetal, apontado pela alteração nos batimentos cardíacos, e que tinha levado à presença de mecônio na bolsa. Fora isso, as dores estavam insuportáveis e eu não tinha nem começado a dilatar. A decisão pela cesárea quedou inevitável.

Com isso, o médico saiu para se preparar para a cirurgia e eu comecei a perceber o desespero das enfermeiras. Elas cochichavam, como se eu não estivesse presente. Eu urrava de dor e uma delas me disse repetidas vezes: “Ué? Mas você não queria parto normal?” Ninguém é capaz de imaginar o ódio que sinto dessa mulher até hoje.

Me levaram à sala de cirurgia. A anestesista insistia para que eu me sentasse e ficasse com as costas curvadas. Mas eu, novamente, não tinha mais intervalo entre as contrações, e ficar sentada era uma tortura. Depois de algumas tentativas, ela conseguiu aplicar a anestesia e eu fiquei chapadíssima. Apesar da tristeza por saber que eu não teria um PN, fiquei feliz em não sentir mais aquela dor.

Alguns minutos depois, o médico entra calmamente na sala de cirurgia. Algumas enfermeiras tentam o apressar lembrando que havia mecônio na bolsa. Hoje eu percebo o completo despreparo daquelas profissionais.

A cirurgia começou e eu não estava participando de nada. A mim, só restou ficar olhando o relógio pendurado na parede da sala. 11h45 foi quando percebi que o Daniel foi erguido pelo médico. Ele não chorou. Foi aspirado assim que nasceu. Levaram-no e logo trouxeram enrolado em panos do hospital para que eu pudesse vê-lo. Sim, apenas ver. Neste momento eu me dei conta que estava amarrada, na mesma posição da crucificação. Outro procedimento totalmente desnecessário. Por conta das amarras, não pude tocar meu filho. Fiquei tão atônita que também não consegui falar com ele. Pela foto, é possível perceber tamanha insensibilidade da enfermeira. No momento em que eu via meu filho pela primeira vez, e percebia que estava amarrada, a enfermeira aplicava alguma injeção em meu braço.



Ele foi novamente levado e passou por todas aquelas intervenções hospitalares de praxe. Meu marido filmou tudo. Hoje, quando revejo as imagens, assemelho aquilo a uma sessão de tortura. Aplicaram-no colírio de nitrato de prata, mesmo eu tendo feito pré-natal com o mesmo médico que me operou e comprovado que eu não tinha nenhuma doença venérea. Realizaram a medição de comprimento, mesmo ele ainda estando com as pernas na mesma posição que ficara por nove meses. No vídeo, é possível observar que ela puxa sua perna repetidas vezes, o que lhe causa um choro alto e sentido.



Quando o médico terminou a cirurgia, veio falar comigo, e eu lhe perguntei primeiramente se caso engravidasse de novo, se poderia ter um parto normal. Ele respondeu afirmativamente. Depois lhe perguntei se aquela dor insuportável era assim mesmo, ele apenas confirmou. Hoje sei que a indução de parto, seja ela por misoprostol ou ocitocina, provocam dores muito mais intensas do que aquelas contrações causadas por hormônios naturais. Além disso, as dores costumam aumentar depois que a bolsa estoura já em TP.

Após a cirurgia, eu fiquei cerca de 2 horas numa sala escura junto de outras duas mulheres. Tentava mexer os dedos do meu pé a todo custo para poder finalmente ir para o quarto. Quando consegui, chamei a enfermeira que me disse que não podia me levar naquele momento, pois era hora de almoço e estava sozinha no plantão. Esperei mais alguns minutos e fiquei surpresa quando cheguei ao quarto e o Daniel não estava lá. Meu marido foi quem me informou que ele estava numa incubadora recebendo oxigênio. Ele nasceu com apgar 8/10. 8/10!!! Seria mesmo necessário deixá-lo por mais de 4 horas em uma incubadora??? Eu só fui poder tocar no meu filho depois de 4 horas após o nascimento. Esse período me pareceu uma eternidade.

Em sua carteira, que recebemos após a alta, constou 3,520 kg, 50cm e 40 semanas. Apesar de eu estar com 41 + 1 semanas de gestação, a idade dele foi de 40 semanas. É muito comum essa disparidade, e pode chegar até duas (às vezes 3) semanas de diferença.

Segundo o GO, muito provavelmente a minha hiperreação à indução se deu pelo fato de que eu entraria em TP naturalmente naquela madrugada. Não ter podido esperar e ter passado por toda essa situação de violência obstétrica afetou em muito a minha maternagem nos primeiros meses de vida do meu filho.

Não é o fato de ter passado por uma cesárea. E sim por ter durante toda a gestação buscado por profissionais que me assegurassem um direito de escolha e ainda assim, ter sido violentada. Fico muito grata pela amamentação ter se estabelecido de uma maneira tão fácil e indolor que me garantiu um vínculo forte e segurança durante o puerpério.

O dia do nascimento do meu filho foi também um dia que me senti muito violentada e eu não desejo isso a ninguém.

Para quem tem condições de arcar com o custo, recomendo muito a contratação de uma doula. Esta profissional tem contatos, conhece a realidade do sistema obstétrico, sabe nomear e apontar violência obstétrica. Ainda que o parto aconteça no SUS, a sua presença pode ser fundamental para se evitar procedimentos desnecessários.

Gostei muito dessas dicas, mas é necessário que se aponte que esse “empoderamento” é algo inacessível amuitas mulheres. E quando estamos pensando no coletivo, é necessário falar sobre as estruturas que mantem este sistema falido e não adestrar a mulher para que consiga driblá-lo.

*Agradeço à Letícia pelo acolhimento quando os sentimentos já não suportavam a ausência de palavras.

** A indução com misoprostol pode acarretar em: "O misoprostol tem como efeito colateral excesso de contrações uterinas (taquissistolia), hipertonia uterina (contração que não passa), náuseas e diarreia. Este excesso de contrações uterinas pode levar a sofrimento fetal e por isso toda indução com misoprostol deve ser adequadamente monitorizada e deve ser realizada em ambiente hospitalar. A presença de cesárea prévia é uma contra-indicação relativa ao uso do misoprostol." Fonte aqui.


2 comentários:

  1. Oi querida. Acabei de ler o seu relato e me emocionou bastante.

    Não sei onde você mora, mas gostaria de te dizer que existem doulas voluntárias, para mulheres que não tem como custear o trabalho de uma doula.

    Se você vier a engravidar novamente, não se prive da companhia de uma doula pela falta de dinheiro. O nosso trabalho vai muito além do dinheiro; queremos que as mulheres tenham uma experiência de parto positiva. E isso é o mais importante.


    Raissa Osorio - Doula em Brasilia

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    1. Olá Raissa!!
      Eu sou de Curitiba e quando eu engravidei nunca havia ouvido falar em doulas. Durante a gestação, que fiquei sabendo do que se tratava mas também não fui atrás pq pensava ser desnecessário.
      Hoje indico a todo mundo. Concordo com você que doulas são presenças essenciais durante o trabalho de parto. Acredito que no meu caso, a presença de uma doula, além da orientação, poderia ter influenciado em inibir as práticas violentas que ocorreram dentro do hospital.
      Obrigada!
      Lígia

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