segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Todas nós somos mães abusivas

Todas nós somos mães abusivas. Em maior ou menor grau, todas acabamos por abusar do poder de autoridade que nos é investido assim que nos tornamos mãe. E não porque essa seja uma condição inata da maternidade, e sim porque a característica iconoclasta a qual o papel de mãe foi alçado é algo inatingível. Tentar dar conta do papel de mãe que nos é imposto acaba, quase que inevitavelmente, em impingir abusos aos filhos que estão sob nossa autoridade.

A exclusividade do cuidado delegada às mães é algo que investe tanto poder numa atividade que nunca poderia ser exercida por uma só pessoa. Cuidar deveria ser sempre um verbo conjugado no plural. Dar conta de uma ou mais crianças é uma atividade tão exaustiva que exercê-la sozinha é uma missão fadada ao fracasso. Porque cuidado que é exercido por uma só pessoa exige que ela renuncie a todas as suas outras características para se tornar apenas cuidadora. Deixa-se de ser mulher para assumir apenas a condição de mãe.

Imagem do filme "Coraline"

E quando falo nessa exclusividade do cuidar não me refiro apenas às mães solteiras, falo do papel de mãe que nos é apresentado hoje. Falo da mentira do instinto materno, que hipocritamente presenteia mulheres com um dom único, o de cuidar. Eleva-as à posição da sacralidade. Preenche de maneira plena sua feminilidade. Em contrapartida, deixa homens livres para se eximirem do cuidado e tomarem o espaço público, já que para conquistar o título de bom pai basta que se troque fraldas.

Por outro lado, a figura da boa mãe é tão perfeita que dificilmente se conhecerá alguma, todavia, ludibriadas pelo mito do amor materno, estaremos todas dispostas a acreditar que possamos também conquistar tal título. E nesta busca cruel pelo reconhecimento fazemos reféns as crianças.

Qualquer comportamento supostamente reprovável de uma criança é logo imputado à maneira como a mãe educa. Sendo assim, filhos saudáveis, gentis e articulados seriam a prova de que a mãe fez um bom trabalho. Seriam, porque na falha a mãe será sempre a culpada, mas no êxito as causas são diversas.

E como conseguir filhos espelhos? Como fazer deles a prova de que passamos no teste da boa mãe? Doutrinando. E toda doutrina, seja ela deliberada ou não, vem marcada por abusos e excessos.

Portanto, não é a maternidade que é eivada de abuso, e sim a forma como exigimos que ela seja exercida que cria um ambiente favorável a ele. Mudar a forma como lidamos com a maternidade e, consequentemente, esvaziar o papel que atribuímos à mãe se mostra urgente.

O esvaziamento do papel de mãe é algo libertador não só para mulheres como também para seus filhos. A pluralidade no cuidado liberta a mulher para ser além da maternidade. Fornece à criança ferramentas para poder diferenciar práticas de cuidado abusivas das respeitosas. Porque saber reconhecer a violência consiste em um bom sinal de sanidade. Porem, quando se vive em um único ambiente, naturaliza-se as práticas ali exercidas, como se não houvesse realidade além daquela. Vivenciar a pluralidade, para além de outros benefícios, faz com que se crie um repertório capaz de reconhecer o abuso.

E é também por isso, que venho me convencendo que a forma como encaramos a maternidade hoje não só aprisiona as mulheres, mas também a seus filhos. Que a responsabilidade pelo cuidado não seja exclusiva de ninguém, que seja coletiva. Que não seja um fardo, que seja terno.
Este texto se originou após reflexão sobre este texto que, por sua vez, surgiu em virtude deste outro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário