Na Alemanha, assim como em outros países europeus, a interrupção voluntária da gravidez é permitida até a 14ª semana de gestação. Não é necessário justificar essa escolha, contudo, a gestante deve ser atendida por um serviço de aconselhamento antes de se submeter ao aborto.
A legalidade acaba por diminuir o moralismo que cerca o tema. E, há uns meses, me deparei com esse relato de aborto vivenciado por uma alemã. Chamou-me a atenção a maneira como ela consegue falar sobre sua decisão de forma honesta e podendo compartilhar com pessoas próximas todo o sentimento envolvido neste período.
Abortos acontecem independente da origem, raça, credo e idade da mulher. Acontecem também em lugares em que a prática é criminalizada e moralmente reprovada. Criminalizar a conduta em nada diminui a sua incidência, ao contrário, mulheres acabam morrendo ao se submeterem a procedimentos realizados na ilegalidade. O aborto é hoje, no Brasil, uma das principais causas de mortalidade materna. A legalização acaba por quebrar um tabu em torno do tema e possibilita que as mulheres possam decidir baseadas em um estrutura que lhes dê apoio.
Por achar muito importante que este tema seja debatido e que se possa conhecer a realidade em outros países é que eu fiz essa tradução de um relato publicado no jornal alemão Die Zeit.
ABORTO: “EU VOU TIRAR ISSO”
“Duas listras rosas deixaram a vida de Lea
Johnens* confusa. Ela está grávida. E tem que decidir, o que ninguém pode
decidir por ela. Nove momentos de um aborto”. Nome alterado.
O SEXO
Abortar?
Nunca. Até durante os estudos, é possível ser mãe. Isso era o que eu pensava –
até ficar grávida. Aconteceu em 23 de dezembro. Meu namorado e eu normalmente
usávamos camisinha. Só dessa vez que não. Nós nos descuidamos, assim como as
pessoas às vezes se descuidam. Eu havia voltado há poucos dias do meu estágio
de Berlim para Colônia. Lucas* e eu pouco tínhamos nos visto e brigávamos muito
ao telefone. No Natal nos aproximamos um pouco de novo. Por isso eu sei
exatamente a data.
A NOTÍCIA
Depois
do Natal, eu tinha muita energia. Quase não precisava dormir, pela primeira vez
em anos eu não tinha mais enxaqueca. Não importava o que eu fizesse, o quanto
eu bebesse – nenhuma dor de cabeça. Hoje eu acredito que eram os hormônios.
Neste período, eu fiz coisas completamente malucas, como dirigir durante quatro
horas no Ano Novo para uma festa em Berlim às cinco horas da madrugada. E
voltar no mesmo dia. Eu comi Currywurst[1], embora eu seja
vegetariana há anos. E logo depois fiquei faminta por Mon Chéri[2].
Como no filme. Foi então que me veio o pensamento que alguma coisa estava
estranha. Eu escrevi no meu diário: “Se eu estiver grávida, seria o horror”. Na
manhã seguinte, eu fui a farmácia e comprei um teste de gravidez. Apenas por
segurança. Eu fiz o teste sozinha no banheiro. Eu sabia como funcionava porque
já tinha feito há alguns anos. Com uma diferença: desta vez apareceram duas
listras – positivo.
OS PENSAMENTOS
Eu mal
podia respirar. Na minha cabeça, de repente, apareceram imagens: eu com bebê,
meu namorado, nós como pais. E sempre o pensamento: “Merda, o que eu faço
agora?”. Em pânico, eu chamei minha melhor amiga. Ela veio imediatamente com um
segundo teste. Ele também deu positivo. Eu corri pela casa, puxando os cabelos
e gritando: “Eu não quero ter um filho com o Lucas! Eu não quero ter um filho
sozinha! Eu não quero ter um filho de jeito nenhum!”. Naquele tempo, eu morava
no sótão de uma casa antiga sem aquecedor, apenas com aquecedor à carvão na sala.
Eu imaginava como eu iria subir as escadas com um bebê em um sling e ficar sozinha em um quarto frio. Eu tinha 25 anos, estava
no meio dos estudos e não tinha ideia de como queria começar minha vida. Meu
namorado e eu havíamos acabado de dar um tempo. Ele havia me traído nas férias
de verão, e eu tinha beijado outra pessoa em Berlim. Nós ficamos juntos depois do
Natal e esperávamos que fossemos nos aproximar de novo. Mas ambos não
acreditávamos de verdade naquilo. E tentar novamente por uma criança seria um
motivo ruim.
Minha
amiga ficou quieta. Ela me aconselhou a ligar para um ginecologista. A
atendente disse: “Ah, que bom. Então venha na terça da próxima semana. E se sua
barriga puxar um pouco, é normal. Ela está se expandindo”. A assistente do
médico falou comigo como se estivesse falando com uma mulher grávida. Eu não me
sentia assim, tampouco queria isso. Eu murmurei “okay”, desliguei e procurei no
Google outro médico próximo a mim. Desta vez, fui direto ao ponto: “Eu estou
com uma gravidez indesejada e preciso de uma consulta imediatamente”. À tarde
eu estava na sala de espera do consultório. Eu sentia as puxadas que a
assistente havia me falado ao telefone.
A VISITA AO MÉDICO
Uma
bolinha no monitor da ultrassonografia: “Este é o feto”, disse o médico. “Você
está na sétima semana”. Como eu não ri, ele desligou o monitor rapidamente. Eu
deveria pensar sozinha se eu queria a criança, disse ele. O importante é
apenas: até a nona semana de gestação eu poderia abortar com um comprimido,
depois disso eu precisaria de uma intervenção com anestesia geral. Eu engoli a
seco. Antes de ir ele ainda me perguntou se eu tinha um companheiro. “Eu também
não sei isso agora”, falei. Então ele me deu um conselho: Eu só deveria falar
com Lucas, quando eu soubesse o que queria. “É seu corpo, sua decisão e você aguentará
as consequências”, ele disse. Eu fiquei surpresa. Meu primeiro impulso seria
ligar para meu namorado. Eu refleti: Lucas era 14 anos mais velho que eu. Ele
desejava um filho. Eu decidi não dizer nada a ele por enquanto.
A DÚVIDA
Nos
dias seguintes, eu falei com minha melhor amiga, meu irmão e minha irmã. Não
consegui contato com minha mãe. Ela estava na Suíça – em um retiro silencioso,
em que celulares eram proibidos. Eu achei um número na internet e finalmente
consegui falar com ela ao telefone. A sua opinião era muito importante para
mim. Também porque ela mesma já tinha abortado. Eu sabia que ela não me
julgaria. Ela disse: “Se você quiser ter o filho, eu estarei lá por você. E se
você não quiser, também”.
Meu
pai pensava diferente. “Você não deve abortar”, dizia ele. “Você nunca vai se
perdoar”. Sua voz soava dura e isso me machucava. Desde criança eu tinha medo
de brigar com meus pais. Eu tentava frequentemente me dar bem com as pessoas,
porque não queria decepcioná-las. Desta vez não seria diferente.
Cinco
anos antes eu já havia acompanhado um aborto da minha melhor amiga na época.
Ela tinha 20 anos, grávida e achava que era muito nova para um filho. Ela
morava comigo. Depois da operação, ela teve hemorragia. Eu fui com ela ao
pronto socorro. Para ela, o aborto foi uma decisão errada. Ela chorava e sempre
dizia: “Eu quero meu filho de volta”. Eu tentava consolá-la e tive que ver o
seu sofrimento. Eu tinha que pensar agora naquele momento. Eu não queria que me
acontecesse também.
Antes
de se poder abortar na Alemanha, deve-se passar por um “conselheiro de grávidas”.
Eu marquei uma consulta no pro família[3].
Na manhã antes da consulta, ao acordar, eu pensei: Okay, eu vou ter essa
criança. À tarde, a atendente do pro família me explicou que eu poderia solicitar um apoio
financeiro, se eu tivesse um filho. E como funciona um aborto. Ele me perguntou
sobre planos para o futuro, sobre meu namorado, sobre a universidade. De
maneira muito neutra e sem tentar me influenciar. A conversa correu bem, mas
depois o sentimento ruim voltou. Para mim ficou claro: era a primeira vez em
minha vida que ninguém poderia me dizer o que é certo ou o que é errado.
A DECISÃO
Eu me
sentia realmente mal. Também fisicamente. A energia das primeiras semanas havia
desaparecido. Eu tinha que vomitar a todo momento, estava cansada e fraca.
Ficava deitada por horas no sofá, colocava minhas mãos sobre a barriga e tentava
senti-lo em mim. Eu tentava construir uma conexão com o que estava em mim. Para
mim, não era apenas um amontoado de células, mas uma forma de vida. Apesar
disso, não considerava o aborto como assassinato. Talvez alguns não consigam
entender, mas para mim foi assim. Eu pedia perdão em pensamento. Finalmente,
escrevi no meu diário: “Eu tenho a sensação que isso é okay.”
Eu
liguei para meu namorado e pedi que ele viesse. Nós não nos víamos havia dias.
Lucas não teve tempo de tirar seu casaco e eu disse: “Eu estou grávida mas não
vou ter o bebê”. Eu tive medo da sua reação. Que ele pudesse ficar furioso ou
sair correndo. Mas em vez disso ele ficou triste e magoado. Porque ele queria
aquele filho e não tinha chance de mudar minha decisão. No final, ele disse:
“Eu acho isso realmente uma merda, mas se você quer assim, eu aceito isso”. Ele
pediu também para me acompanhar no médico. No dia seguinte, marquei uma
consulta.
O COMPRIMIDO
Eu
fiquei surpresa como tudo correu de forma banal. Eu mostrei para o médico o
documento do pro família. Ele
perguntou: “Você tem certeza?” Eu assenti, ele me deu dois comprimidos. Um dele
eu deveria tomar no consultório. “Ele interrompe o desenvolvimento do embrião”,
disse ele. O segundo, eu tomaria três dias depois. “Ele assegura que o útero consiga
expelir o tecido”. Um gole de água, um aperto de mão, e eu já podia ir. Eu tive
que chorar ali fora. Não porque eu queria voltar atrás de minha decisão, mas
porque correu tudo muito rápido. Quando o Lucas me buscou pela manhã, eu estava
muito ansiosa. Agora me sentia vazia. Lucas me pegou pelo braço e nós bebemos
café juntos. Então ele me trouxe para casa. Foi bom que ele estivesse junto.
Um dia
depois minha mãe chegou da Suíça. O médico havia dito que alguém deveria cuidar
de mim por conta da hemorragia. Minha mãe trouxe flores e uma vela. Eu estava
tão feliz em vê-la.
O SANGUE
Quando
eu tomei o segundo comprimido, não durou nem meia hora para que o sangue
viesse. Vermelho vivo, com pedaços de tecido. Era tanto. Eu sabia que
sangraria, mas não tinha ideia de quão forte seria. Eu não deveria usar
absorvente interno, aquilo tinha que sair. Eu estava usando absorvente, mas
alguns minutos depois, meu sofá estava todo manchado de sangue. O pior foi que
eu tive ainda que vomitar. Os analgésicos não funcionaram, eu gemia, ficou tudo
escuro. Durante uma hora eu pensei que fosse morrer. Nunca sofri tanto. Minha
mãe ligou para o médico. Ele disse que não era comum. Mas foi porque os
analgésicos não pararam em meu estômago. Minha mãe comprou supositórios na
farmácia. Cerca de duas horas depois, a dor diminuiu. Depois de uma semana, o
sangramento parou. Eu tive que descansar. Também do choque. Eu não imaginei que
vivenciaria o aborto fisicamente, quando eu tomei os comprimidos de hormônio.
Ainda tive que ir mais uma vez a uma consulta de controle. Esta foi a última
vez que estive no consultório.
A LEMBRANÇA
O
aborto aconteceu há três anos. No primeiro aniversário, eu escrevi em meu diário:
“Hoje tive um sentimento em particular. Como se ‘aquilo’ tivesse aniversário”.
Era na verdade um dia de morte. Mas não sentia, em absoluto, desse jeito. E sim
como uma despedida de uma possibilidade.
Agora,
eu tenho um novo namorado. Desde algum tempo venho me perguntando com mais
frequência como seria ter um filho. A minha imagem de mãe não me traz mais
medo. Ao contrário. Mas: nunca me arrependi da minha decisão.
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